Por Elis Franco
Há
palavras que geram em mim sensações contraditórias. O termo “legado” é uma
delas. Gosto dessa palavra quando penso em tudo o que tenho capacidade de
aprender com quem já cumpriu a sua sina sobre a terra. Quanta coisa importante
foi construída, descoberta e perpetuada? Quantos nomes fazem parte da nossa
história política, artística e científica? Quanta beleza perderia o mundo sem
os monumentos materiais e imateriais que existem em todas as culturas?
Sinceramente, deve ser bom, enquanto
vivos, termos a dimensão de que se cria, se descobre e se projeta algo que
mudará o pensamento e a prática de uma comunidade, seja ela local ou mais
ampla. Deve ser maravilhoso imaginar nosso nome escrito nos anais das
civilizações, as homenagens em vida ou póstumas; os elogios pela nossa
capacidade intelectual ou criativa. Mas, afinal, qual o preço a pagar quando
deixar um legado torna-se uma obsessão?
Nesse sentido, essa palavra me causa
estranheza, sobretudo quando alguns acreditam que é obrigatoriedade do humano
deixar sua marca para a posteridade. Ou melhor, não é isso. O que me causa
estranheza é o que as pessoas consideram legados passíveis de serem perpetuados como modelo. O legado é uma memória que se quer viva, vivíssima. Porém, quem
legitima o que deve ser perpetuado ou esquecido? A partir de quais critérios de
validação?
Fico imaginando se alguém que teve
uma vida simples, que não se tornou um escultor, um escritor, um músico, um
cientista, um pintor, um bom político, um artista em diferentes áreas, se uma
pessoa assim não é capaz de gerar uma memória a ser preservada. Muitos até se
envergonham, pois acreditam, dentro do padrão que parte da sociedade estabelece,
terem falhado na sua missão humana, visto não fazerem parte dos considerados
prodigiosos, das mentes pensantes.
O legado não deve ser a finalidade
do viver. As nossas marcas, criações e saberes não serão nossos quando
partirmos, ainda que nossos nomes sejam perpetuados. A ação, a criação, o
pensar, sim, devem mover as nossas vidas. O quanto isso pode ser útil para
facilitar a vida de alguém, para proporcionar um prazer estético, é a principal
razão de ser; até quanto tempo isso durará, já é uma outra questão. Qual memória de nós,
para além do que é ditado, podemos deixar quando partirmos?
Talvez o afago e o carinho para um
filho, amigo ou estranho; aquele café bem feito e cordialmente servido no setor
do trabalho; o jardim bem cuidado, exalando aromas de flores; a saudação matinal
para o porteiro do prédio; o ouvido atento e a palavra certa, na hora certa. Quais
memórias de cidadãos e cidadãs “comuns” marcam nossa existência? Se nos marcaram,
tentemos preservá-las, claro, repetindo-as. Eis o nosso principal legado.
02/01/18
Publicada em: FRANCO, Elis. Memórias afetivas. Salvador: Cogito, 2018. p. 67 e 68