terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Memórias de mim quando eu partir


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Por Elis Franco
  
Há palavras que geram em mim sensações contraditórias. O termo “legado” é uma delas. Gosto dessa palavra quando penso em tudo o que tenho capacidade de aprender com quem já cumpriu a sua sina sobre a terra. Quanta coisa importante foi construída, descoberta e perpetuada? Quantos nomes fazem parte da nossa história política, artística e científica? Quanta beleza perderia o mundo sem os monumentos materiais e imateriais que existem em todas as culturas?
            Sinceramente, deve ser bom, enquanto vivos, termos a dimensão de que se cria, se descobre e se projeta algo que mudará o pensamento e a prática de uma comunidade, seja ela local ou mais ampla. Deve ser maravilhoso imaginar nosso nome escrito nos anais das civilizações, as homenagens em vida ou póstumas; os elogios pela nossa capacidade intelectual ou criativa. Mas, afinal, qual o preço a pagar quando deixar um legado torna-se uma obsessão?
            Nesse sentido, essa palavra me causa estranheza, sobretudo quando alguns acreditam que é obrigatoriedade do humano deixar sua marca para a posteridade. Ou melhor, não é isso. O que me causa estranheza é o que as pessoas consideram legados passíveis de serem perpetuados como modelo. O legado é uma memória que se quer viva, vivíssima. Porém, quem legitima o que deve ser perpetuado ou esquecido? A partir de quais critérios de validação?
            Fico imaginando se alguém que teve uma vida simples, que não se tornou um escultor, um escritor, um músico, um cientista, um pintor, um bom político, um artista em diferentes áreas, se uma pessoa assim não é capaz de gerar uma memória a ser preservada. Muitos até se envergonham, pois acreditam, dentro do padrão que parte da sociedade estabelece, terem falhado na sua missão humana, visto não fazerem parte dos considerados prodigiosos, das mentes pensantes.
            O legado não deve ser a finalidade do viver. As nossas marcas, criações e saberes não serão nossos quando partirmos, ainda que nossos nomes sejam perpetuados. A ação, a criação, o pensar, sim, devem mover as nossas vidas. O quanto isso pode ser útil para facilitar a vida de alguém, para proporcionar um prazer estético, é a principal razão de ser; até quanto tempo isso durará,  já é uma outra questão. Qual memória de nós, para além do que é ditado, podemos deixar quando partirmos?
            Talvez o afago e o carinho para um filho, amigo ou estranho; aquele café bem feito e cordialmente servido no setor do trabalho; o jardim bem cuidado, exalando aromas de flores; a saudação matinal para o porteiro do prédio; o ouvido atento e a palavra certa, na hora certa. Quais memórias de cidadãos e cidadãs “comuns” marcam nossa existência? Se nos marcaram, tentemos preservá-las, claro, repetindo-as. Eis o nosso principal legado.
02/01/18

Publicada em: FRANCO, Elis. Memórias afetivas. Salvador: Cogito, 2018. p. 67 e 68