terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Aspectos sociocríticos na poética de Aleilton Fonseca


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Por Elis Franco

Texto proferido no Curso Castro Alves 2017- Academia de Letras da Bahia.


Aleilton Fonseca, acadêmico desta casa, é prosador e poeta, tendo investido, pelo menos a título de publicação, mas naquela do que nesta. No entanto, hoje, neste evento em que se discute a profícua literatura baiana, escolhi falar sobre sua poética, selecionando uma temática que me parece fundamental para que a poesia se instaure, de fato, não apenas entre um público “seleto”, acadêmico, mas para que ela possa tocar o âmago do cidadão que, sendo parte do todo social, pode refletir sobre as problemáticas que os versos de Fonseca apresentam. Desse modo, far-se-á uma leitura sociocrítica de três poemas do livro As formas do barro e outros poemas (2006).
            Para sustentar a discussão sobre uma análise sociocrítica, tomo como operador de leitura o texto “A ideia de literatura como processo civilizatório e educativo”, de Antenor Antônio Gonçalves Filho, para quem,
           

“[...]para a busca de uma compreensão mais segura do fenômeno literário, devemos partir de uma análise do homem-escritor com seus gestos argumentativos enquanto ser situado em um meio social, com seus conflitos emoldurados em utopias, sonhos, fantasias, loucura e a literatura se apresentando como uma saída a mais para a superação desses conflitos. Nesse sentido, a literatura expressa o desejo humano de durar e de romper, por meio da palavra esculpida, com as rotinas asfixiantes de sua vida.” (FILHO, 2000, p. 76-77)


            Tal visão coloca o poeta não como um artista alienado em sua torre, olhando para o céu a contemplar estrelas, mas como um sujeito enraizado em sua história, capaz de não apenas através da palavra-profética, que antecipa, mas também através da palavra-denúncia que, mesmo por si só não sendo capaz de mudar o mundo, tem o potencial de sensibilizar o leitor, fazendo-o ampliar seu horizonte crítico diante da conjuntura que vivencia e, quem sabe, tornar-se um sujeito ativo e menos alienado. Desse modo, de acordo com Filho (2000, p. 80):

A sociocrítica dispõe, portanto, de uma fronteira visível, palpável, e em consequência, uniforme: a relação do social e da forma estética. A densidade de uma obra literária se expressa quase sempre pela densidade de nossos dramas sociais e, por que não acrescentar, de nossos dramas existenciais e históricos.


         Neste ponto, a análise realizada não deve perder de vista a questão estética, a escolha exata das palavras, as construções metafóricas, o trabalho criativo com a linguagem, a fim apenas de exaltar os elementos sociocríticos. Os dois fatores complementam-se e serão aqui postos em cena, no intuito de observarmos como a palavra poética de Aleilton Fonseca, ao trazer a vida, em seu caráter histórico, complexo, problemático, para a literatura, também, aproxima a literatura da vida que nem sempre percebemos como tal, a não ser quando ela no vitima, nos atinge e nos enreda em seus laços contraditórios e asfixiantes. Passemos à análise dos poemas.
            O primeiro poema a ser analisado é “Companhia dos deuses” (FONSECA, 2006, p.23), no qual, logo nos primeiros versos, percebe-se a crítica à comercialização da fé.

Morre um deus,
outros nascem:
quaisquer se compram
entre novos e usados.

Entre templos & mercados
há deuses em liquidação:
 a cada soluço ou topada
busca-se um novo deus,
aprende-se a mesma oração.

A relação entre fé e comercialização é perceptível nas expressões “compram”, “novos e usados”,”mercados” e “liquidação”. Ao buscar uma denominação religiosa diferente, a fim de resolver os conflitos e problemas,  o fiel depara-se com o mesmo discurso, como sinalizam os versos “busca-se um novo deus,/aprende-se a mesma oração.” Além disso, os versos refletem a ideia de oferta da fé dentro da perspectiva mercadológica, visto que existe a lógica da relação comercial da liquidação, aquele que oferecer mais vantagens por menos sacrifício, certamente conquistará novos adeptos. E segue o poeta:


Um deus e suas verdades,
pronta entrega em balcão,
cada  qual com seus milagres,
embalados em ondas curtas,
em fita, em papel, papelão.

Se atende fácil aos chamados,
pelo bem do fiel ao consumo,
é descartável a curto prazo,
e até uma próxima ascensão.
                                                     
            Nas duas últimas estrofes, a lógica do mercado continua, e os termos “pronta entrega”, balcão”, “embalados”, “atende”, “consumo” e “descartável” indicam outros aspectos das transações comerciais.  Ademais, o eu lírico, antenado à regra do consumo contemporâneo que é, sobretudo, a satisfação passageira e a realimentação do desejo e da procura, conclui o poema revelando o quanto, nem as divindades, pois aqui não se trata apenas do Deus em maiúscula dos cristãos,  escapa aos modos atuais de aquisição de produtos, já que nem eles  conseguem, sem uma propaganda que satisfaça às vontades individuais, manter a fé do fiel que, para além das necessidades espirituais, busca a satisfação das necessidades corporais, materiais, as quais, nem sempre, são atendidas pelos deuses encontrados em tantos templos/mercados.
            Em “Torres e castelos” (FONSECA, 2006, p.25), outra reflexão cara aos nossos tempos é apresentada: a insegurança que atinge todas as classes sociais. Eis o poema:

Encastelados ou em torres,
protege-se do futuro
o homem, em suas apólices
de seguro, mas, inseguro

instala os olhos ao redor,
e tranca a alma no cofre,
evita sua sombra ao sol,
e em cada esquina sofre

a  dor de quem, tendo tudo,
perde o sentido do mundo,
e dentro de um olhar mudo
o medo é seu ser profundo.

            As primeiras palavras do poema remetem-nos a uma ambientação considerada segura, contudo, em seguida, o eu lírico desconstrói tal perspectiva. Ainda que o poeta tenha selecionado termos como castelo e torres, pode-se fazer uma analogia a espaços contemporâneos como os condomínios, os quais, aparentemente, oferecem uma condição de segurança mais adequada. É nesse momento que a sensibilidade poética se instaura e o eu lírico reflete sobre as implicações que os problemas sociais trazem para os indivíduos. Ou seja, em busca da segurança desejada, aqueles que são providos de condição financeira satisfatória investem em equipamentos, limitam os espaços de circulação e, como resultado, deixam de usufruir da totalidade espacial da cidade e, pior, vivenciam a experiência do medo da socialização. Para além do que já foi pontuado, cabe ressaltar o olhar crítico do poeta que parece nos querer fazer enxergar o quanto fazer parte de uma classe social mais abastada não torna o cidadão imune às consequências das mazelas sociais. E aqui fica, de minha parte e por uma provocação que o poema suscitou, um questionamento: além das medidas individuais de proteção, o que os cidadãos, juntos, podem fazer para, independente da classe a que pertencem, possam transitar e habitar seguro em/no mundo, livres da sensação de aprisionamento que a insegurança provoca?
            Para finalizar nossa análise, passemos ao poema “Consummatum est” (FONSCA, 2006,p.27 e 28), ampliando, assim,  o olhar sociocrítico sobre a poética de Aleilton Fonseca.

Compre: beba, coma, vista
pegue, passe, pague, gaste-se
entre,coma, entre em coma
vista bacana, beba bacana
babe, beba, gaste a grana
compre linha, linho, lã.

Use, abuse, lambuze
compre, beba, coma, vista
à vista, a prazo, perca a vista
beba omo lave com coca
com bom brio calce arisco
coma sapa vista patos.

            O problema do consumismo exarcerbado, motivado pelo capitalismo, é denunciado nos versos deste poema. Em um tom concretista, limitando as palavras, mas as selecionando de modo a atingirem pleno significado, o poeta, através do diversos imperativos, brinca com as palavras, como em “coma”, no sentido de alimentar-se, e “entre em coma”, a fim de inserir o leitor no ambiente do consumo. No verso “com bom brio calce arisco”, há a referência a marcas reconhecidas, porém, brincando com os termos, o eu lírico pede-nos brio, amor-próprio, dignidade. Na sequência temos:

Curta iogurte e cole e forme
o que vale por um tabefinho,
tome tédio, coma remédio
pinte o sete no cerebelo
implante semente de cabelo
fume o colorido, o forte.

Pague por boa morte
compre a grande sorte
gaste saúde, remoce
com creme ou se creme
ou alugue um ataúde
ou troque de coração.

            Nas estrofes anteriores, a sequência de imperativos continua e o jogo com as palavras também, como em “gaste saúde, remoce/ com creme ou se creme”, ou seja, invista em tratamentos estéticos e rejuvenesça ou aguarde a morte que virá, independente da aparência exterior. Em todos os setores da sociedade a lógica é consumir continuamente não apenas o que é necessário, mas o que se deseja, sem limites. E mais:

Beba um rim usado
coma carro importado
viaje, em pêlo, imundo
vague pelo mundo
dê o pouco a quem tem muito
propague  cartão de crédito.

Cheque o seu cheque e mate-se:
empreste-se, suco ou muco,
ao consumo, à soma, avaro,
consuma-se de vez em vão,
corra, suma pelo ralo, morra,
mas ainda compre: um caixão.

            Os versos finais apresentam a crítica mais acentuada ao consumismo, apontando os problemas vivenciados pelos sujeitos caso entrem no jogo do mercado, sobretudo os endividamentos com cartões de crédito e cheques. No último verso, “mas ainda compre: um caixão.”, o eu lírico, mesmo ciente de que comprá-lo é uma situação irremediável para aqueles que não passarão por outro processo de sepultamento, parece indicar que, para aqueles que se satisfazem em comprar sem refletir (observe que muitos verbos utilizados no poema não condizem com a ação do produto a ser consumido),  o último consolo será morrer consumindo e, certamente,  até na morte, se não tiver optado antes, alguém irá buscar o melhor produto, nem sempre pela necessidade, mas pelo status que este  possa trazê-lo em seu momento final.
            Penso que os poemas analisados, para além de uma literatura fechada em seus signos e símbolos linguísticos, cumpre o papel de colaborar para o processo civilizatório e educativo, pois “[...] a literatura sem ter  a pretensão de nos ensinar alguma coisa, acaba por nos ensinar muito mais.” (FILHO, p. 90). Concluo tentando responder, diante da leitura dos poemas de Aleilton Fonseca, à pergunta de Filho: “Será que o mundo hoje (e talvez sempre) presta atenção ao que está acontecendo na literatura? E ao contrário: Será que a literatura presta atenção ao que acontece no mundo hoje?”. Se o mundo inteiro não se importa, uma parte dele, como nós e tantos outros leitores, sim; se todos os poetas e prosadores não se importam, uma parte deles, como Fonseca, sim. E isso nos anima a acreditar no poder da literatura e sua palavra carregada de sentido.
           



REFERÊNCIAS

FILHO, Antenor Antônio Gonçalves. A ideia de literatura como processo civilizatório e educativo. In: ______:  Educação e literatura. Rio de Janeiro, DP&A, 2000. p. 73-110
FONSECA, Aleiton. As fomas do barro & outros poemas. Salvador: EPP Publicações e Publicidade, 2006.











sexta-feira, 23 de novembro de 2018

IV Concurso Municipal de poesia de Feira de Santana- Premiação

 Recebendo a premiação pelo 1º lugar.


As queridas Luzia e Marialice

O poeta Roberval Pereyr


Os poetas Carol Pereyr e Weslley Almeida.


As poetas Rita Queiroz e Alexandra Patrocínio

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Dos ínvios caminhos


 Eis que estamos todos sós!
Sem deus, sem planos:  mil margens...
E o rio a passar diante de nós – incólume.

As certezas – nossa prisão necessária – ruíram;
O medo – lança cravada no peito – paralisa-nos;
Na viela, aguarda-nos o cão feroz a farejar destinos.

E rio a passar diante de nós – soberbo.
Eis o cão e o homem: uma dor solitária...
Sem sonhos, em prantos, sutil encruzilhada.

Os amores – sede de futuro adiada – adormecem;
As paixões – neblina a ofuscar a aurora – lançam-nos
Na caverna inóspita de onde nunca saímos.

E o rio a passar diante de nós – o mesmo.
Águas turvas de outrora arrastando a leveza
Dos que permanecem Homens, ainda que sós.

Poema vencedor do IV Concurso Municipal de poesia de Feira de Santana- Georgina Erismann. 2018

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Pelo tempo que for


Quando não se deseja ficar,
é imoral devotar amor,
dizer-se apaixonado.

Amor é repousar a cabeça
pensando na eternidade
(esse sonho infantil).

É escolher permanecer
por gratidão, tesão, ou
 − quem sabe – sentimento.

 Ou por tudo isso reunido,
ou por nada disso: amar é
insondável profundidade.

Se não desejas ficar,
não faças juras de amor,
apenas fiques pelo tempo que for.

FRANCO, Elis. In: MOTHÉ, Fernanda (Org.). DiVersos lados do amor. Campos dos Goytacazes: Darda Editora, 2018. p. 15

Primeiro amor



O primeiro amor sempre vai embora,
ainda que vá ficando de mansinho,
na presença morna dos corpos,
ou nas pegadas frias do caminho.

O primeiro amor sempre permanece,
na angústia da partida inesperada,
nas quentes e nas gélidas madrugadas,
ou no beijo que já não provoca arrepio.

O primeiro amor é sempre encruzilhada,
saídas possíveis, angústia redobrada:
ancorar-se na esperança do infindo,
ou partir para a outra margem do rio?

O primeiro amor é sempre o derradeiro,
e todo amor que é presente − o de agora
não o de outrora − deve ser o amor
primeiro a compor uma nova história.


FRANCO, Elis. In: MOTHÉ, Fernanda (Org.). DiVersos lados do amor. Campos dos Goytacazes: Darda Editora, 2018. p. 14

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Encontros


O dia fez-se frio. Algo incomum naquela estação do ano, por isso, Jana havia saído de casa sem o seu agasalho e, como de costume, logo passou a espirrar e coçar o nariz avermelhado. Desde criança era sensível à frieza, talvez porque sua mãe a tratasse com excessos de cuidados, não permitindo que saísse desprotegida durante à noite, reclamando o tempo inteiro do sorvete dado pelo pai, do banho de piscina ou de qualquer situação que a colocasse supostamente em risco. Jana cresceu fugindo da frieza, tinha pavor de ar-condicionado e ventiladores, preferia o vento entrando pela janela do quarto, trazendo aquele frescor natural.
Para ela, era um suplício acordar nos dias de inverno, sobretudo quando eram chuvosos e muito gélidos. Mas, aos poucos, foi aprendendo a driblar os sintomas, protegendo-se como podia dos ventos quando saía de casa cedo ou precisava transitar durante à noite. Na verdade, determinados espaços eram por ela sempre evitados, a fim de não ficar envergonhada com a sequência de espirros que a deixavam totalmente sem graça. Foi justamente naquele dia que saiu desprotegida que ela precisou assistir a uma apresentação teatral de sua amiga Leila, em um teatro inaugurado há dois meses, friozinho do jeito que os lugares fechados merecem ser, como afirmavam todos os que a achavam sensível demais.
Ao chegar ao local, atrasada, por sinal, Jana dirigiu-se à sala, sentou-se em um dos poucos lugares disponíveis, tentando não fazer barulho. Para seu azar, ficou próxima ao local mais frio do teatro, tendo que, numa atitude inconsciente, encolher-se um pouco, como se o seu gesto bastasse para aliviar os arrepios que sentia. A peça começou a ser apresentada e, logo na primeira cena, percebeu a presença de Leila, radiante em seu figurino, majestosa em cada fala, em cada gesto. Jana a admirava pelo talento e, de algum modo, sentia-se também naquele palco, atuando de forma tão brilhante quanto sua amiga.
Apesar de demonstrar atenção, os arrepios a incomodavam, deixando-a, por vezes, inquieta, o que foi notado por um rapaz que estava ao seu lado e dirigiu-se a ela em um tom de voz sussurrante:
— Boa noite! Percebo que está com frio. Aceita o meu casaco? Eu o trouxe apenas por prevenção, mas sou mesmo é calorento.
— Boa noite! Aceito sim. Não consigo me concentrar. Estou congelando.
Ele retirou o casaco que estava sobre as pernas e passou para Jana, sorrindo em seguida. Os dois voltaram os olhares para o palco, que deixou de ser o único foco de atenção desde então. Após quarenta minutos de espetáculo, Jana pressentiu que teria uma daquelas crises de espirros e, rapidamente, pediu licença ao rapaz e foi ao banheiro, fugindo, assim, de um vexame. Lá esteve por cerca de dez minutos, tempo necessário para tomar um daqueles antialérgicos e refazer-se. Foi aí que ouviu os aplausos da plateia e percebeu que a peça havia terminado.
Ao chegar ao salão de entrada, as pessoas circulavam, gesticulavam, trocavam opiniões sobre a apresentação e ela, eufórica, procurava o rapaz que havia lhe emprestado o casaco, mas nada de encontrá-lo. Depois de alguns minutos, percebendo que estava ficando tarde para retornar para casa, deixou o local levando não apenas o casaco, mas a imagem daquele rosto atencioso e belo que havia feito seu coração reaquecer-se naquela noite.
Já em casa, Jana tentou dormir, porém, não conseguia deixar de pensar em como reencontrar o dono do casaco se ela sequer sabia seu nome, não possuía o número do seu telefone. Foi percebendo que era uma situação difícil e adormeceu. A partir de então não o tirou mais da cabeça, acordava, ia trabalhar, voltava para casa fabulando situações de um novo encontro, fosse na esquina, em um restaurante, na fila do banco, fosse onde fosse. Chegou a buscar notícias sobre a apresentação teatral, na tentativa de encontrar um foto, uma informação que a reaproxima-se dele.
O nível de encantamento dela era tamanho que se esqueceu de ligar para a amiga após o espetáculo, o que deve ter deixado Leila furiosa. As duas só voltaram a se falar uma semana depois, quando Jana, mais tranquila, tentou explicar-lhe por que não foi falar com ela após o evento.
— Leila, meu bem, você não faz ideia do que me aconteceu no dia da sua apresentação. Até hoje estou meio zonza, por isso esqueci até de falar contigo, amiga.
— Jana, fiquei chateada no momento, mas depois passou. Eu também vivi algumas situações estes dias. Precisamos mesmo conversar. Olha, estou ocupada com os ensaios e precisarei sumir um tempo. Assim que estiver mais livre, podemos marcar um encontro para colocarmos o papo em dia. O que acha?
— Acho ótimo! Ligue-me quando puder.
Despediram-se e voltaram a cuidar de suas vidas. Jana, cada vez mais, fantasiava o reencontro com o moço do casaco. Sentia-se uma adolescente apaixonada daqueles romances juvenis, sua alma era apenas sonho, idealização e devaneios. Os dias foram passando...
Passado um mês após o contato entre as duas, Leila ligou para Jana e decidiram se encontrar numa cafeteria próxima ao trabalho de Jana. No dia do encontro, o tempo estava nublado e Jana, impulsionada pela paixão, levou consigo o casaco recebido na noite do espetáculo. Na hora marcada, lá estavam as amigas, saudando-se com calorosos abraços e beijos.
— Como andam os ensaios?
— Bem mais tranquilos. O primeiro momento é sempre tenso, depois as coisas fluem. Conte-me aí o que ocorreu com você naquela noite para você desaparecer.
— Uma cena digna de novela. Imagine que um lindo rapaz ofereceu-me o casaco dele, este que estou vestida, para aplacar o frio que eu sentia, mas, como sempre, sofri uma crise de espirros antes do espetáculo terminar, fui ao banheiro e não o encontrei mais. Sequer sei o seu nome. Desde então, vivo no mundo da Lua, apaixonada e sonhadora.
— Só você mesmo, viu! Eu também tenho minha história. Ao final da apresentação, as pessoas sempre vão no parabenizar, conversar sobre a nossa atuação. Naquela noite eu recebi um rapaz encantador, trocamos telefone e hoje...
O telefone de Leila toca.
— Alô! Boa noite, Alef, tudo bem com você? Estou com uma amiga naquele café que viemos sexta passada. Quer vir aqui para conhecê-la? Ótimo! Estamos aguardando você. Beijo!
As duas retomam a conversa, mas já perderam o fio da meada, passando assim a falar sobre outros assuntos. Após alguns minutos, Jana pede licença e levanta, penetrando no espaço interno da cafeteria. Nesse momento, Alef aparece e senta-se ao lado de Leila, faz seu pedido e trocam carícias. Jana vem surgindo lentamente e percebe o acompanhante da amiga, ele está sentado de costas para ela, assim, não pode, de imediato, confirmar a sua fisionomia.
Ao aproximar-se da mesa, Jana fica imóvel, suspensa no ar. Leila, alegremente, fala para ele:
— Esta é Jana, Alef, uma amiga de longa data. Queria muito que vocês se conhecessem.
Alef olha para Jana e percebe que ela veste o casaco que ele lhe oferecera na noite em que também conhecera Leila. Ele havia procurado Jana pelo teatro antes de ir parabenizar Leila pela apresentação. E Leila agora era a sua namorada, não dava para fugir disso.
Jana o olhou cabisbaixa, e pelo seus olhos Alef sentiu que seu coração congelara. Já não era possível aquecê-la como fez na primeira vez que se viram.

FRANCO, Elis. In: Histórias de amor não correspondido. Org: Fernanda Mothé Pipas. Campos dos Goytacazes: Darda Editora, 2018. p. 15 -19

domingo, 22 de julho de 2018

Lançamento do livro Memórias afetivas, em Feira de Santana


Declamação do poema "Nem Gauche nem esbelta", de Elis Franco


2017

Declamação do poema "Entre aspas", de Elis Franco

2018

Para nunca mais



Era um dia quente, o que provocava nela uma lassidão sem limites. O corpo jogado no sofá, na tentativa de encontrar um modo de arejar o pensamento. Resolveu ler um pouco, foi à estante, olhou atentamente as opções disponíveis. Tinha a mania de acumular livros, mesmo sabendo que jamais leria algumas de suas aquisições. Como desejava suprimir o desânimo que a tomara, fugiu dos temas tristes, mas também não buscou nada que a tirasse do estado meditativo que se encontrava. Abriu um livro de frases de Clarice Lispector, fechou-o. De repente decidiu abri-lo aleatoriamente, desejando que a página apresentasse, como um vaticínio, algo que mobilizasse sua vida, retirando-a do estado de inércia. Seus olhos leram Misteriosamente a gente cumpre os rituais da vida. Não sabia o que o trecho significava no contexto do livro Um sopro de vida, não o havia lido ainda, porém, compreendeu que, de fato, o rito se cumprira, encerrando um ciclo de sua história.
            De repente, colocou o livro na estante como se suas mãos ardessem em chamas. Continuou procurando uma leitura agradável. Decidiu reler alguns contos de Clarice, sem medo que as palavras da autora provocassem nela aquela sensação de instabilidade emocional pela qual passava todas as vezes que a lia. Dirigiu-se até a sala, recostou-se novamente no sofá, desta vez de forma mais confortável, colocando almofadas como apoio. Ao iniciar a leitura, encontrou em uma página amassada um poema que havia escrito meses atrás.

Foste sol que aquece em dia frio,
canto de pássaro na aurora,
brisa suave ao entardecer.

Foste o quanto pudeste, nada mais.

Vieram o  inverno, e a desesperança,
coração fez-se impenetrável geleira,
as ondas rebelaram-se contra o cais.

Restaram as marcas na areia da praia...
para nunca mais, para nunca mais.

            Aqueles versos resumiam uma história da qual ela tentava escapar e que não havia como explicar a si ou a qualquer pessoa que a indagasse. Às vezes, o destino nos impulsiona a seguir por vias aparentemente planas e, por alguns momentos, temos a ilusão de que chegaremos ao paraíso. Era o que imaginava naquele instante. Até hoje não compreendia como pôde desafiar a razão e entregar-se à paixão de modo tão intenso; como pôde subverter todas as regras de conduta que vivera antes de o conhecer; como teria ido tão longe quando, na verdade, tinha plena consciência de que tudo terminaria mal. Por que sair dos trilhos sabendo que o acidente é inevitável? Era a pergunta que se fez no dia em que partiu para nunca mais voltar.
            Vivera a seu lado momentos maravilhosos, descobrira sensações, sentiu-se plenamente amada. No início, a alegria dos dois era contagiante, agiam como se fossem dois aventureiros adolescentes a descobrir os encantos da vida. Eram felizes, todos percebiam. Mas quiseram ter além do que poderiam, as moiras não estavam de acordo com os desejos deles. Ou melhor, os desejos deles não entravam em acordo. Stela precisava decidir. E decidiu. Lúcio queria muito ficar, seus gestos, seu sofrimento, as lágrimas a correr em seu rosto demonstravam isso. Mas talvez fosse apenas posse ou a vaidade de não querer ser abandonado. Era tudo muito confuso para ela. Ele decidiu não ficar. Pelo menos não inteiramente da forma que ela desejava. Lúcio também estava confuso, buscava estabilidade e acreditava que Stela não seria capaz de amá-lo para sempre.
Quando pensava na difícil relação dos dois, lembrava-se de um poema da Rupi Kauar: ela era uma rosa/ mas quem a pegou na mão/ não tinha intenção/ de guardá-la. O mais doloroso para Stela não era saber que ele não ficaria definitivamente. Ela não suportava saber que tudo que ele desejava era ficar, mas, por alguma razão, fugia da permanência. O pior de tudo era que ele não compreendia o fato de ela não desejar mais ficar da maneira que agradava apenas a ele. O coração de Lúcio endureceu-se, não havia mais nada a fazer.
Depois de uma longa digressão, Stela voltou à leitura. Concentrada, folheou páginas e mais páginas, rapidamente, pois aquelas histórias eram bem familiares a ela. Cansou-se. Levantou-se e foi à cozinha, bebeu um pouco de água fria e retornou à sala, em um ritmo desatinado de quem já não sabe onde estar e para aonde ir. Passou a ler o conto Felicidade clandestina, agora lentamente, como se buscasse nele um conforto, uma resposta nunca antes encontrada. Ela não sabia se odiava a menina da livraria por não emprestar o livro ou se sentia raiva da garota que tanto necessitava de um livro que não era seu. Era ela a menina necessitada, mas era também a que podia dar.
No final da leitura, não conseguia sentir a alegria frenética da garotinha com o livro tão desejado. Súbito, passou a se perguntar repetidas vezes por que tanto amor se não era para ter sido, se não era para ter durado. Ela não queria que a felicidade para ela continuasse a ser clandestina. Lúcio não a compreendeu. Enquanto tentava se estabilizar, pegou o livro da Rupi Kauar e foi lendo, fora da sequência, os poemas. O telefone tocou, era Lúcio. Não o atendeu de imediato, só o fez após muita insistência dele. Do outro lado da linha, uma voz agora desconhecida sussurrou baixinho:
− Por que isso, amor? Por que partir desta maneira?
Stela, sem ação, apenas leu dois dos poemas que estavam diante de seus olhos.

“eu tive que ir embora
eu estava cansada
de deixar que você
me fizesse me sentir
qualquer coisa
menos que inteira”

“eu não fui embora porque
eu deixei de te amar
eu fui embora porque quanto mais
eu ficava menos
eu me amava”

Desligou o telefone. Fechou o livro. Abriu-se a uma nova vida.

In: MENDES, Suellen (Org.). Por que, amor? Campo dos Goytacazes:Darda Editora, 2018, p.10-13


O amor exige um pouco de coragem



          O amor sempre pede de nós um pouco de coragem. Sabia disso desde que o viu pela primeira vez. Não que tivesse sido amor à primeira vista, mas já despontara nela aquele frio na barriga, e o que veio depois foi uma sucessão de loucuras e equívocos bem planejados. Nunca imaginou que algo tão furtivo fosse marcar profundamente a vida de duas criaturas muito livres para estarem presas a padrões e impedimentos. Na verdade, jamais pôde compreender as razões pelas quais o destino, se é que há destino, havia aproximado os dois. Sua vida, até então eclipsada pelas intempéries amorosas, recebia a iluminação de uma estrela mais do que cadente, um cometa avassalador.
                 Conheceram-se...
            Talvez seja preciso dizer que ela foi seduzida, fortemente arrastada pelas narrativas dele, homem do mundo, cheio de aventuras sexuais, um caso em cada porto. Era um exímio marinheiro, ainda que suas andanças fossem terrestres. Ele a seduzia, não premeditadamente, pela palavra; encantava-a através de seus relatos quentes, provocantes, despudorados. Ela, que quase nada sabia sobre sexo sem amor, sexo por sexo, estava diante de um mundo novo que a enredava aos poucos e, por mais que não soubesse ao certo o que acontecia, sentia-se bem ao ouvir cada relato, cada história de quem sabia as artimanhas de não se prender a ninguém.
            Transaram...
            Sexo por sexo, inicialmente. Pelo menos para ele, pois ela já trazia consigo um desejo de estar mais perto sempre, de penetrar aquele mundo de fantasia, volúpia e tesão descontrolados. Sexo ruim, por sinal. Estavam embriagados, final de festa, apenas dois corpos excitados buscando descarregar a tensão. No outro dia, a realidade. Prometeram não darem continuidade ao caso, continuariam colegas. Enganaram-se profundamente. O universo conspirava a favor do corpo, do desejo, eles iriam ceder diversas vezes, sem saber que, cada vez mais, o tesão aumentaria, o afeto surgiria de mansinho e não daria para fugir daquela esplêndida iluminação.
            Envolveram-se...
           Haviam decidido que eram livres. Ela, inicialmente, achou que poderia apenas ser sua parceira sexual e até gostava de vê-lo narrar suas façanhas. E veio o dia em que ele a deixou sozinha, preferindo ir ao encontro de outra. Ela percebeu, e sofreu. Ele nunca saberá o ritmo do coração dela naquele noite. Ele nunca compreenderá a sua insônia, a angústia e todos os medos atingindo-a em cheio. Ele não compreendia que ela o amava. E ela sabia que não poderia ter deixado isso acontecer.
Sem perceberem, aos poucos o laço entre eles foi apertando, passaram a ser cúmplices em tudo.  Era uma experiência diferente que viviam, só não sabiam ao certo por que viviam. Mas ele resistia, não queria entregar-se a um único corpo; isso era desconstruir seu perfil de homem pegador. E aquele amor que ela sentia a impulsionava para ele, para ele sozinho, para ele com elas. Já não conseguia controlar seu sentimento, e ia se perdendo nele, perdendo-se por ele, perdendo-se...
Veio o ciúme, ela ofegante, descumprindo o trato inicial, exigindo dele exclusividade, sofrendo antecipadamente mesmo sabendo que não tinha direito de cobrar dele um comportamento diferente do que ele tinha. Ela, confusa, querendo fugir do que sentia. Ele, confuso, querendo fugir das novas regras impostas por ela. Eles, confusos, repelindo-se e atraindo-se numa luta feroz.
Amaram-se...
E no fundo ela sabia que o inevitável aconteceria. Na verdade, desde que se envolveram, ela sempre soube que aquela história estava fadada ao fracasso; sentia-se pequenina diante da grandeza dele. Como explicar, então, o amor que faziam reluzindo no ar?  Eram momentos de êxtase, de profundo encantamento; eram dois corpos tão um, impossível pensar em uma bipartição. O inevitável.
Naquele final de tarde de dezembro ela descobriu o que era desmastreio. Tudo tão no lugar, tudo tão bagunçado. E o amor a exigir sempre um pouco de coragem. As despedidas, as continuidades. Como seu corpo sem o dele? Onde a sua vida sem a sua? Sabia o quão era difícil para ele abandonar a variedade de corpos, sabia que ele havia tentado, esforçado-se ao máximo. Sabia que havia nele certa dose de afeto, já não era mais sexo apenas. Sabia... De repente, ele a encosta na parede, segura suas mãos. Olha-a nos olhos. O inevitável.
O coração dela dispara, um calafrio a toma por completo, o medo das perguntas, o pânico das respostas. Não queria ouvi-lo, não estava preparada.
− Por que eu estou hoje aqui?
− Não sei.
− Eu poderia estar em outro lugar?
− Talvez, penso que sim.
− E por que você está aqui?
− Porque quis. Eu sempre quero estar aqui.
− Mas você sabe que eu poderia estar em outro lugar, não sabe?
− Sim. Não tenho dúvidas.
− Eu preciso lhe dizer algo, mas não sei por onde começar.
−Não precisa dizer. Eu já sei...
− Sabe? Como assim?
O inevitável.
− Mulher sempre sabe, por mais que não queira ver.
− Você é muito cheia de certezas.
− Não. Sou mesmo é cheia de dúvidas.
Silêncios...
Ela afasta-se lentamente, suas mãos gélidas não tocam mais as dele. De repente, um sussurro baixinho:
− Fique!
− O quê?
− Fique.
Ficar era uma palavra dura. Ficar significava enraizar-se sem medo. E ela tinha medo que cortassem suas raízes depois, deixando-a solta no ar.
− Preciso ir.
− Não precisa.
− O que está dizendo?
− Para você ficar. Já não sei andar sozinho.
− Impossível. Você sempre foi senhor de si.
− E tudo que fiz até então. Não percebe o quanto eu tenho ancorado aos poucos?
− Ancorar é bom ou ruim?
−É difícil dizer. Não sei bem ainda.
E o amor exigindo sempre um pouco de coragem.
− Eu mudei minha rota, fiz de sua vida a minha, ainda que não soubesse demonstrar direito. Eu também tenho medo.
− De ficar?
− Não. De ir.
− E o que faremos com os nossos medos?
− Não sei.
− Ficar não é o seu perfil. Não sei se conseguiria.
Ela deu as costas para ele, a porta abrindo-se, a porta fechando-se. Ele estático. Súbito, ela retorna, aproxima-se, encosta seu rosto no dele, abraça-o apertado. Aqueles segundos eram a eternidade. O silêncio... Amaram-se.
Satisfeitos no aconchego de braços que acolhem, de lábios que se tocam e olhares que se encontram, sorriem.
− Se ancorar é tão difícil, por que você está disposto a abandonar as ondas agitadas do mar?
            − Eu nunca tive pouso, sempre migrei. Não sabia o que era repousar a cabeça pensando na eternidade. Hoje eu sei. Você sempre diz que o amor exige de nós um pouco de coragem. Eu tenho medo, mas tenho coragem. E fico, mesmo diante de minhas incertezas, para que saiba, para que compreenda; para que eu saiba, para que eu compreenda o quanto que eu te amo...

In: FERNANDA, Mothé (Org.). O quanto que eu te amo. Campos dos Goytacazes: Darda Editora, 2017.