sábado, 20 de janeiro de 2018

Em minha cama deita quem eu quero


Por Elis Franco

Não era mais uma menina com um livro:
Era uma mulher com o seu amante”
Clarice Lispector

A propósito da cama, esse lugar para muitos tão íntimo e sagrado, estive refletindo um pouco estes dias. Na verdade, eu estava conversando com minha filha de quinze anos sobre relacionamentos, o quanto eu, ao imaginar que terei que dividir meu guarda-roupa, repenso se quero ou não brincar de ser casada novamente. Além disso, falamos sobre outras questões das quais não me recordo agora.
Houve um momento da conversa que disparei: em minha cama, deita quem eu quero! Homem, mulher, brasileiro, estrangeiro, não importa a condição sexual do indivíduo. Claro que fui obrigada a explicar-lhe a minha colocação, pois, assim como você deve estar pensando agora, ela deve ter imaginado um monte de bobagens. Na verdade, eu havia feito uma brincadeira, comparando uma paixão entre duas pessoas com a paixão que eu tenho pelos livros.
Naquela hora, veio-me à cabeça o fato de minha cama estar sempre tomada por livros, já que não consigo ler um por vez. Misturo leituras, leio ficção, filosofia, poesia e tudo mais que sentir vontade. Meus queridinhos não ficam magoados quando eu enjoo da monotonia de um deles e busco uma leitura mais empolgante; de repente eu não comungo com o que um outro me diz e jogo-o de lado; olho para o outro que me olha e seduz, abandonando, assim, o anterior. E sabe qual é o resultado disso? De uma forma ou de outra eu consigo ler todos, cada um em um ritmo diferenciado, tentando vencer os desafios que me são impostos.
Em termos de relacionamentos amorosos, bem que a lógica que eu opero com os livros deveria ser válida. Todavia, quem de nós considera-se preparado para ser colocado de lado até quando o parceiro ou quase parceiro decidir que quer continuar decifrando nossas páginas? Apesar da diversidade dos relacionamentos afetivos atuais, lidar com um tipo de negociação dessa não é fácil. E eu não relacionei cama e livro de modo despropositado.
O que eu quero, na verdade, é refletir sobre duas questões interessantes. A primeira diz respeito a por que a vida afetiva/sexual de alguém pode ser motivo de preocupação geral, lembrando aqui Caetano Veloso e o seu “Todo mundo quer saber com quem você se deita”. As páginas de fofocas estão repletas de casos de separação ou inícios de relacionamentos, e isso vende pra caramba. No mais, quantos de nós já fizemos aquele comentário sobre quem “pega” quem;  quem, de fato, merecia “ficar” com quem? Esqueçamos a contagem.
Para unir as pontas desta conversa, quero falar sobre livros. A leitura foi e continua sendo elitizada em nosso país e, desde sempre, há aqueles que se sentem no direito de legitimar o que deve ou não ser lido, o que é ou não uma boa leitura, sobretudo quem, como eu, gosta muito dos textos clássicos. Porém, talvez esteja na hora de deixarmos de ser tão preconceituosos com as leituras alheias e buscarmos outros mecanismos para colaborarmos com a ampliação de repertório dos leitores que estão próximos a nós.
Ao longo dos anos, criei, por decisão própria − o que é muito difícil − ou por influência de professores e amigos, o meu repertório de leituras. Leio o que gosto; leio o que não gosto, mas considero ser importante ler; leio por deleite ou porque preciso aprender alguma coisa. Nossas leituras são caminhos que vamos percorrendo, às vezes sem refletir muito, outras, com uma finalidade estabelecida. Cada indivíduo tem necessidade diferente e sente-se preenchido com as leituras que faz. Assim, não custa nada partilhar os saberes sem impor, afinal, estamos operando com subjetividades.
Estou aprendendo a agir dessa maneira, pois, se em minha cama deita quem eu quero, nos dois sentidos abordados, por que eu tenho que ser fiscal de quem põe em sua cama quem deseja? Cama, livros e amores... ponha-os onde desejar. No caso dos livros, a monogamia limita-nos; no caso dos amores, ela é desejada por muitos, ainda que nem sempre cumprida.

Feira de Santana, 10 de janeiro de 2018

Publicado em: FRANCO, Elis. Memórias afetivas. Salvador: Cogito, 2018. p. 75-77