Por Elis Franco
Não era mais uma
menina com um livro:
Era uma mulher com
o seu amante”
Clarice Lispector
A
propósito da cama, esse lugar para muitos tão íntimo e sagrado, estive
refletindo um pouco estes dias. Na verdade, eu estava conversando com minha
filha de quinze anos sobre relacionamentos, o quanto eu, ao imaginar que terei
que dividir meu guarda-roupa, repenso se quero ou não brincar de ser casada
novamente. Além disso, falamos sobre outras questões das quais não me recordo
agora.
Houve
um momento da conversa que disparei: em minha cama, deita quem eu quero! Homem,
mulher, brasileiro, estrangeiro, não importa a condição sexual do indivíduo.
Claro que fui obrigada a explicar-lhe a minha colocação, pois, assim como você
deve estar pensando agora, ela deve ter imaginado um monte de bobagens. Na
verdade, eu havia feito uma brincadeira, comparando uma paixão entre duas
pessoas com a paixão que eu tenho pelos livros.
Naquela hora, veio-me à cabeça o fato de minha cama
estar sempre tomada por livros, já que não consigo ler um por vez. Misturo
leituras, leio ficção, filosofia, poesia e tudo mais que sentir vontade. Meus
queridinhos não ficam magoados quando eu enjoo da monotonia de um deles e busco
uma leitura mais empolgante; de repente eu não comungo com o que um outro me
diz e jogo-o de lado; olho para o outro que me olha e seduz, abandonando,
assim, o anterior. E sabe qual é o resultado disso? De uma forma ou de outra eu
consigo ler todos, cada um em um ritmo diferenciado, tentando vencer os
desafios que me são impostos.
Em termos de relacionamentos amorosos, bem que a
lógica que eu opero com os livros deveria ser válida. Todavia, quem de nós
considera-se preparado para ser colocado de lado até quando o parceiro ou quase
parceiro decidir que quer continuar decifrando nossas páginas? Apesar da
diversidade dos relacionamentos afetivos atuais, lidar com um tipo de
negociação dessa não é fácil. E eu não relacionei cama e livro de modo
despropositado.
O que eu quero, na verdade, é refletir sobre duas
questões interessantes. A primeira diz respeito a por que a vida afetiva/sexual
de alguém pode ser motivo de preocupação geral, lembrando aqui Caetano Veloso e
o seu “Todo mundo quer saber com quem
você se deita”. As páginas de fofocas estão repletas de casos de separação
ou inícios de relacionamentos, e isso vende pra caramba. No mais, quantos de
nós já fizemos aquele comentário sobre quem “pega” quem; quem, de fato, merecia “ficar” com quem?
Esqueçamos a contagem.
Para unir as pontas desta conversa, quero falar
sobre livros. A leitura foi e continua sendo elitizada em nosso país e, desde
sempre, há aqueles que se sentem no direito de legitimar o que deve ou não ser
lido, o que é ou não uma boa leitura, sobretudo quem, como eu, gosta muito dos
textos clássicos. Porém, talvez esteja na hora de deixarmos de ser tão
preconceituosos com as leituras alheias e buscarmos outros mecanismos para colaborarmos
com a ampliação de repertório dos leitores que estão próximos a nós.
Ao longo dos anos, criei, por decisão própria − o
que é muito difícil − ou por influência de professores e amigos, o meu
repertório de leituras. Leio o que gosto; leio o que não gosto, mas considero
ser importante ler; leio por deleite ou porque preciso aprender alguma coisa.
Nossas leituras são caminhos que vamos percorrendo, às vezes sem refletir
muito, outras, com uma finalidade estabelecida. Cada indivíduo tem necessidade
diferente e sente-se preenchido com as leituras que faz. Assim, não custa nada
partilhar os saberes sem impor, afinal, estamos operando com subjetividades.
Estou aprendendo a agir dessa maneira, pois, se em
minha cama deita quem eu quero, nos dois sentidos abordados, por que eu tenho
que ser fiscal de quem põe em sua cama quem deseja? Cama, livros e amores...
ponha-os onde desejar. No caso dos livros, a monogamia limita-nos; no caso dos
amores, ela é desejada por muitos, ainda que nem sempre cumprida.
Feira
de Santana, 10 de janeiro de 2018
Publicado em: FRANCO, Elis. Memórias afetivas. Salvador: Cogito, 2018. p. 75-77