É
possível amar alguém sem querer estar junto da pessoa, por exemplo,
quando se sabe que, apesar de todos os fortes
sentimentos, ambos não combinam.
Richard David Precht
Como
poetizou Camões, o mundo é invariavelmente composto por mudanças. E não apenas
o mundo físico, mas o das ideias, dos acontecimentos, das atitudes e gestos humanos.
Daí que muitos de nós, quando chegamos a uma certa idade, tendemos a romantizar
o passado, afirmando que no nosso tempo não era assim. No nosso tempo os
namoros eram diferentes, a sociedade era menos violenta, os filhos obedeciam aos
pais, os alunos respeitavam os professores. Ah! E os casamentos eram
duradouros.
Seguindo
o pensamento do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, não é difícil encontrar quem
afirme o quanto os amores tornaram-se líquidos na contemporaneidade. No
entanto, talvez aqueles que consideram o número crescente de separações um
sinal de que estamos indo mal, caiba uma pergunta bastante intrigante. Ao longo
da história da solidez nas relações matrimoniais, quem pagou o preço para garantir
a estabilidade do lar? Basta conversar com uma pessoa de idade avançada que
ela, por experiência, saberá pontuar algumas questões.
Pensando
nisso, não há como não relacionar a situação da mulher, ao longo dos séculos, à
preservação da estabilidade dos casamentos. Em sociedades em que a mulher era
educada para ser dona de casa, negando-lhe o direito ao estudo, ao trabalho, à
participação social, cabendo-lhe apenas o papel de mãe, cuidadora e responsável
por “segurar” o marido, não foi difícil fazê-la preservar uma relação, diversas
vezes abusiva, visto saber da impossibilidade de ser bem vista pela sociedade
após uma separação, ou da dificuldade de prover o sustento dos filhos. Como
reagir às traições e à toda sorte de violência, ou até mesmo à falta de desejo
de continuar junto, se era coagida pela violência simbólica, como afirma Pierre
Boudier, por meio de discursos machista, inclusive pronunciados por outras
mulheres, a permanecer cumprindo seu papel de mãe e esposa?
Quando
reflito sobre tal questão, penso na personagem Joana, do livro Perto do coração selvagem, de Clarice
Lispector, publicado em 1944. Diante da descoberta da traição do marido e de que
Lídia, a amante, estava grávida, nada fez para sustentar uma relação esgotada
por dilemas comuns a um casamento, afinal, a responsabilidade da continuidade
não era apenas dela. É certo que Joana é uma personagem ficcional, e as razões
pelas quais nada fez têm a ver, também, com o seu desejo de liberdade, o qual
era esvaziado ao manter um relacionamento não mais produtivo, por isso ela
afirma: “E ser uma mulher casada, quer dizer, uma pessoa com destino traçado.
Daí em diante é só esperar pela morte. Eu pensava: nem a liberdade de ser
infeliz se conserva porque se arrasta consigo outra pessoa”.
Contemporaneamente,
porém, as mulheres conquistaram espaço, muitas provêm o sustento do lar após
uma separação e estão mais livres até para não desejar um casamento. É certo,
também, o quanto são inúmeros os casos de casamentos duradouros e respeitosos
no passado, de casais que souberam driblar os desafios de estarem juntos, fosse
por amor ou pelo desejo de manter uma rotina viável à configuração familiar,
garantindo a estabilidade emocional e financeira da família.
Dividir
uma lar, as contas, os dilemas, as alegrias, planejar e construir juntos, tudo
isso continua sendo o desejo de boa parte de homens e mulheres. Hoje, talvez, o
que mudou foi a ideia de que se deve suportar tudo, caso contrário, você, homem
ou mulher, será considerado um fracassado por não conseguir sustentar a
relação. Casar, em significativa parte dos casos, é uma atitude passional;
continuar casado, contudo, é uma atitude racional que exige uma análise
profunda sobre qual lado da balança pesa mais: o dos benefícios ou dos
malefícios.
A balança de cada parceiro pesa de
acordo com suas necessidades sentimentais ou financeiras; sua relação de
carência ou dificuldade de partir para uma nova relação ou seguir sozinho. De
nada adianta o julgamento social de que seria possível continuar apesar de; de
que se deveria romper por causa de... Todos temos direitos de viver as
experiências as quais julgamos válidas. Acho que casamento é uma maratona para
a qual não fomos bem preparados, por isso, perdemos o fôlego em algum momento
da trajetória, alguns mais cedo, outros mais tarde. Em algumas situações, é
possível recuperar o ar e continuar o percurso, sobretudo se tivermos ao lado
um parceiro ou parceira que também deseje continuar correndo, num mesmo ritmo,
sem privar a liberdade de quem está ao lado.
Feira de
Santana, 20 de maio de 2018
Enquanto o som
na vizinha tenta atrapalhar as minhas divagações.