domingo, 15 de março de 2015

A primeira lição sobre o amor


Por Elis Franco

Outro dia, estava eu deitada no sossego do meu quarto, quando minha filha caçula, depois de eu ter enchido a paciência dela para deixar um pouco de lado a televisão e o tablet, apareceu com um inseto preto e branco, o qual chamou de “joaninha” (e eu não falei nada porque achei que era uma joaninha mesmo, mas que na verdade é mais conhecido como “soldadinho”), perguntando-me empolgada se ela poderia cuidar dele “pra sempre”. Era uma alegria tão contagiante, que me fez levantar para observar aquele pequenino ser, tão delicado, pousado sobre uma folhinha verde que ela trazia em uma das mãos.
Rapidamente, mais rápido do que eu poderia supor, afirmei que ela poderia cuidar sim do pequeno bichinho. Eu só não esperava que ela fosse pedir para colocá-lo em um vaso com tampa, a fim de que o precioso animalzinho não fugisse de seu poder. Confesso que não pensei muito para responder e disparei algumas informações, em um tom de voz meigo e cuidadoso, pois tudo que eu não desejava era acabar com o brilho existente em seus olhos.
– Minha querida, você poderá ficar com ele, mas não deve aprisioná-lo, porque se ele ficar sem oxigênio, irá morrer.
– E o que eu faço, então? Falou com ar meio triste.
– Você deve cuidar dele, ficar com ele, até o dia em que ele desejar. Uma hora ele precisará voar novamente e você terá de permitir. O “pra sempre” acabará nesse momento.
Ao contrário do que eu esperava, a danada balançou a cabeça em sinal afirmativo, partindo do quarto feito louca, talvez para aproveitar o máximo de tempo que seria o sempre do soldadinho. Só aí eu percebi que, sem querer, havia ensinado a ela a sua primeira lição sobre o amor. Uma lição que pareceu a ela tão simples, tão fácil de ser executada, mas que para nós adultos, é cheia de impasses e dificuldades de assimilação.
Quando aquele momento passou, eu nada mais soube sobre a joaninha dela. Não me lembrei de perguntar, ou não quis, sei lá! Um dia, provavelmente, eu terei de conversar sobre outras lições amorosas. Voltarei a falar sobre o pequeno inseto da infância e mostrarei que, em uma tarde qualquer, ela havia aprendido a primeira lição sobre o amor. Mas aí ela será jovem ou adulta e, infelizmente, talvez não consiga mais ter a mesma reação que teve quando criança.
15/03/15

Publicado em: FRANCO, Elis.  Memórias afetivas. Salvador: Cogito, 2018. p. 13 e 14.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

A arte da amizade


Por Elis Franco

A quem chamar de amigo em uma época em que as relações são, em muitos casos, sustentadas mais por contatos virtuais do que físicos? A quem chamar de amigo quando amigos de longa data, conhecidos recentes e pessoas nunca vistas estão inseridos em um mesmo contexto, obtendo informações sobre nossas vidas em um mesmo grau de qualidade e quantidade?
Assim como outras instâncias dos relacionamentos interpessoais, a amizade, ou pelo menos aquilo que é classificado como amizade, também sofreu modificações. Talvez seja necessário pensar como o personagem de Antoine de Saint-Exupéry, ao afirmar que o tempo dedicado a algo ou a alguém expressa o quanto este algo ou alguém é importante para nós.
É possível, ainda, assim como propôs o filósofo Aristóteles, classificar a amizade em três tipos distintos: amizade recíproca, amizade baseada na utilidade e a amizade baseada no prazer. Há aqueles que se tornaram amigos não pelo que outro possui ou será capaz de fazer por ele, mas apenas pelo que o outro é; pelo caráter e atitude, devotando-se mutuamente respeito e admiração.
Há pessoas, porém, que se fazem amigos pensando na utilidade que o outro terá em sua vida; nos benefícios que poderão receber. Tais pessoas, logo que cessarem os benefícios, irão buscar novas amizades, visto que seu objetivo deixou de ser alcançado. E o que dizer daqueles que se tornam nossos amigos a fim de desfrutar dos momentos agradáveis que somos capazes de lhes proporcionar? Do prazer que sentem ao estar ao nosso lado?
Certamente, em nosso grupo de amizade devem existir pessoas iguais a essas. Certamente, talvez estejamos nivelando os nossos amigos a partir do que eles apenas “são”, da “utilidade” que nos oferecem ou pelo “prazer” da companhia agradável. A verdade é que chega um momento em que é preciso organizar a lista e colocar cada coisa em seu lugar. Amigos verdadeiros não precisam ter utilidade... Amigos verdadeiros são aqueles com quem podemos contar, mesmo que eles não nos ofereçam nada de material. Amigos são seres diante de quem retiramos o véu que nos cobre a face esculpida por medos, traumas, dúvidas e alegrias.  Se não for possível retirar o véu, provavelmente está na hora de reorganizar a lista.

In: Memórias afetivas. Salvador: Cogito, 2018. p. 31-32