quarta-feira, 27 de junho de 2018

O valor de uma viagem



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Por Elis Franco

A verdadeira viagem do descobrimento não consiste em procurar
novas paisagens, mas em ver com novos olhos.
Marcel Proust

            Viajar nos ensina muitas coisas quando estamos, de fato, dispostos a sair do lugar. Todo deslocamento, seja ele desejado ou de algum modo inevitável, pode nos fazer pensar fora da caixa, ampliar nossa percepção de mundo, pois sair do lugar é também sair de si, do modo unívoco de enxergar o mundo e desestabilizar a rotina que há em nós, que limita as possibilidades de aceitar os desafios e agir para além do que somos, do que já estamos confortáveis em realizar.
            Quando o deslocamento é para um espaço físico e cultural muito diverso do nosso, aí as adaptações são ainda mais necessárias. Como encaixar-se no ritmo de vida do outro, no modo como uma cultura concebe certas regras de convivência? Como não ser deselegante ao mostrar nossas maneiras de existir sem, contudo, desconsiderar a forma como os outros são? Infelizmente, nem sempre conseguimos sair plenamente de nossas moradas, e isso nos impede de ampliar a experiência de existir.
            Em minhas viagens, percebo o quanto, às vezes, tenho dificuldade de fazer a troca necessária, sobretudo no que diz respeito à culinária local, pois não sou muito aberta a retirar o meu paladar da rotina. Além disso, há também a questão do horário de alimentação. E minha fisionomia não esconde quando olho para um determinado prato e acho que ele “não descerá”, mesmo antes de tê-lo saboreado. Já passei por diversas situações desagradáveis assim.
            Certa vez, viajei para a cidade de Humaitá, no Amazonas, e foi uma das semanas alimentares mais difíceis de minha vida. Comecemos pelo tão queridinho açaí. Aquela bebida terrosa não desceu. E era suco de açaí no café da manhã, não sei o que mais de açaí durante o dia todo. Voltei de lá sem gostar e, até hoje, não lhe dei uma segunda chance. E o que falar do peixe? Meu Deus! Acostumada com a moqueca baiana, carregada no leite de coco e no azeite, dei de cara com um peixe cozido em bastante água, nada de azeite, não me lembro se havia leite de coco, mas recordo-me de uns ovos cosidos inteiros boiando na falada caçarolada de peixe. O jeito foi pedir um bife. E teve uma badejo meio adocicado, a farinha grosseira e outras coisinhas mais.
            No entanto, esta divergência entre meu paladar e o do nortista fez-me perceber a solicitude das pessoas daquele lugar. Não faltaram esforços, por parte de quem recebeu a mim e a meus amigos, na tentativa de encontrar locais onde o sabor da comida fosse-nos agradável, e que pudéssemos, na medida do possível, saborear a culinária típica daquela região. Para além das refeições, contemplar o rio Madeira, atravessá-lo de balsa, saber como é a vida de quem está entranhado em nossa esplêndida floresta foi uma experiência fantástica. E eu, de fato, queria ser mais flexível quando o assunto é saborear algo que desestabilize o código do meu paladar.
            O valor de uma viagem, certamente, tem a ver com o que podemos levar de nosso lugar sem impossibilitar a abertura para o diferente. Viajar para ativar novos modos de olhar o habitual e o inabitual. Deslocar-se como quem sabe em que consistem nossas raízes, mas que se pode sempre penetrar diversos territórios do saber e do sabor. Penetrar na diferença que há no outro, respeitando seus limites. Permitir que o outro penetre na diferença que há em nós, respeitando nossas fronteiras.
           

Lençóis, 24 de junho de 2018.
Enquanto penso na canjica junina preparada por minha mãe. E que não comi neste São João.

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