Por Elis Franco
A verdadeira viagem do
descobrimento não consiste em procurar
novas paisagens, mas em
ver com novos olhos.
Marcel Proust
Viajar
nos ensina muitas coisas quando estamos, de fato, dispostos a sair do lugar.
Todo deslocamento, seja ele desejado ou de algum modo inevitável, pode nos
fazer pensar fora da caixa, ampliar nossa percepção de mundo, pois sair do lugar
é também sair de si, do modo unívoco de enxergar o mundo e desestabilizar a
rotina que há em nós, que limita as possibilidades de aceitar os desafios e
agir para além do que somos, do que já estamos confortáveis em realizar.
Quando
o deslocamento é para um espaço físico e cultural muito diverso do nosso, aí as
adaptações são ainda mais necessárias. Como encaixar-se no ritmo de vida do
outro, no modo como uma cultura concebe certas regras de convivência? Como não
ser deselegante ao mostrar nossas maneiras de existir sem, contudo, desconsiderar
a forma como os outros são? Infelizmente, nem sempre conseguimos sair
plenamente de nossas moradas, e isso nos impede de ampliar a experiência de
existir.
Em
minhas viagens, percebo o quanto, às vezes, tenho dificuldade de fazer a troca
necessária, sobretudo no que diz respeito à culinária local, pois não sou muito
aberta a retirar o meu paladar da rotina. Além disso, há também a questão do
horário de alimentação. E minha fisionomia não esconde quando olho para um
determinado prato e acho que ele “não descerá”, mesmo antes de tê-lo saboreado.
Já passei por diversas situações desagradáveis assim.
Certa
vez, viajei para a cidade de Humaitá, no Amazonas, e foi uma das semanas
alimentares mais difíceis de minha vida. Comecemos pelo tão queridinho açaí.
Aquela bebida terrosa não desceu. E era suco de açaí no café da manhã, não sei
o que mais de açaí durante o dia todo. Voltei de lá sem gostar e, até hoje, não
lhe dei uma segunda chance. E o que falar do peixe? Meu Deus! Acostumada com a
moqueca baiana, carregada no leite de coco e no azeite, dei de cara com um peixe
cozido em bastante água, nada de azeite, não me lembro se havia leite de coco,
mas recordo-me de uns ovos cosidos inteiros boiando na falada caçarolada de
peixe. O jeito foi pedir um bife. E teve uma badejo meio adocicado, a farinha
grosseira e outras coisinhas mais.
No
entanto, esta divergência entre meu paladar e o do nortista fez-me perceber a
solicitude das pessoas daquele lugar. Não faltaram esforços, por parte de quem
recebeu a mim e a meus amigos, na tentativa de encontrar locais onde o sabor da
comida fosse-nos agradável, e que pudéssemos, na medida do possível, saborear a
culinária típica daquela região. Para além das refeições, contemplar o rio
Madeira, atravessá-lo de balsa, saber como é a vida de quem está entranhado em
nossa esplêndida floresta foi uma experiência fantástica. E eu, de fato, queria
ser mais flexível quando o assunto é saborear algo que desestabilize o código
do meu paladar.
O
valor de uma viagem, certamente, tem a ver com o que podemos levar de nosso
lugar sem impossibilitar a abertura para o diferente. Viajar para ativar novos
modos de olhar o habitual e o inabitual. Deslocar-se como quem sabe em que
consistem nossas raízes, mas que se pode sempre penetrar diversos territórios
do saber e do sabor. Penetrar na diferença que há no outro, respeitando seus
limites. Permitir que o outro penetre na diferença que há em nós, respeitando
nossas fronteiras.
Lençóis, 24 de junho de
2018.
Enquanto penso na
canjica junina preparada por minha mãe. E que não comi neste São João.
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