domingo, 20 de maio de 2018

No meu tempo era assim


É possível amar alguém sem querer estar junto da pessoa, por exemplo,
 quando se sabe que, apesar de todos os fortes sentimentos, ambos não combinam.
Richard David Precht

Como poetizou Camões, o mundo é invariavelmente composto por mudanças. E não apenas o mundo físico, mas o das ideias, dos acontecimentos, das atitudes e gestos humanos. Daí que muitos de nós, quando chegamos a uma certa idade, tendemos a romantizar o passado, afirmando que no nosso tempo não era assim. No nosso tempo os namoros eram diferentes, a sociedade era menos violenta, os filhos obedeciam aos pais, os alunos respeitavam os professores. Ah! E os casamentos eram duradouros.
Seguindo o pensamento do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, não é difícil encontrar quem afirme o quanto os amores tornaram-se líquidos na contemporaneidade. No entanto, talvez aqueles que consideram o número crescente de separações um sinal de que estamos indo mal, caiba uma pergunta bastante intrigante. Ao longo da história da solidez nas relações matrimoniais, quem pagou o preço para garantir a estabilidade do lar? Basta conversar com uma pessoa de idade avançada que ela, por experiência, saberá pontuar algumas questões.
Pensando nisso, não há como não relacionar a situação da mulher, ao longo dos séculos, à preservação da estabilidade dos casamentos. Em sociedades em que a mulher era educada para ser dona de casa, negando-lhe o direito ao estudo, ao trabalho, à participação social, cabendo-lhe apenas o papel de mãe, cuidadora e responsável por “segurar” o marido, não foi difícil fazê-la preservar uma relação, diversas vezes abusiva, visto saber da impossibilidade de ser bem vista pela sociedade após uma separação, ou da dificuldade de prover o sustento dos filhos. Como reagir às traições e à toda sorte de violência, ou até mesmo à falta de desejo de continuar junto, se era coagida pela violência simbólica, como afirma Pierre Boudier, por meio de discursos machista, inclusive pronunciados por outras mulheres, a permanecer cumprindo seu papel de mãe e esposa?
Quando reflito sobre tal questão, penso na personagem Joana, do livro Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, publicado em 1944. Diante da descoberta da traição do marido e de que Lídia, a amante, estava grávida, nada fez para sustentar uma relação esgotada por dilemas comuns a um casamento, afinal, a responsabilidade da continuidade não era apenas dela. É certo que Joana é uma personagem ficcional, e as razões pelas quais nada fez têm a ver, também, com o seu desejo de liberdade, o qual era esvaziado ao manter um relacionamento não mais produtivo, por isso ela afirma: “E ser uma mulher casada, quer dizer, uma pessoa com destino traçado. Daí em diante é só esperar pela morte. Eu pensava: nem a liberdade de ser infeliz se conserva porque se arrasta consigo outra pessoa”.  
Contemporaneamente, porém, as mulheres conquistaram espaço, muitas provêm o sustento do lar após uma separação e estão mais livres até para não desejar um casamento. É certo, também, o quanto são inúmeros os casos de casamentos duradouros e respeitosos no passado, de casais que souberam driblar os desafios de estarem juntos, fosse por amor ou pelo desejo de manter uma rotina viável à configuração familiar, garantindo a estabilidade emocional e financeira da família.
Dividir uma lar, as contas, os dilemas, as alegrias, planejar e construir juntos, tudo isso continua sendo o desejo de boa parte de homens e mulheres. Hoje, talvez, o que mudou foi a ideia de que se deve suportar tudo, caso contrário, você, homem ou mulher, será considerado um fracassado por não conseguir sustentar a relação. Casar, em significativa parte dos casos, é uma atitude passional; continuar casado, contudo, é uma atitude racional que exige uma análise profunda sobre qual lado da balança pesa mais: o dos benefícios ou dos malefícios.
            A balança de cada parceiro pesa de acordo com suas necessidades sentimentais ou financeiras; sua relação de carência ou dificuldade de partir para uma nova relação ou seguir sozinho. De nada adianta o julgamento social de que seria possível continuar apesar de; de que se deveria romper por causa de... Todos temos direitos de viver as experiências as quais julgamos válidas. Acho que casamento é uma maratona para a qual não fomos bem preparados, por isso, perdemos o fôlego em algum momento da trajetória, alguns mais cedo, outros mais tarde. Em algumas situações, é possível recuperar o ar e continuar o percurso, sobretudo se tivermos ao lado um parceiro ou parceira que também deseje continuar correndo, num mesmo ritmo, sem privar a liberdade de quem está ao lado.

Feira de Santana, 20 de maio de 2018
Enquanto o som na vizinha tenta atrapalhar as minhas divagações.

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