"Mas eu nunca sei o que
fazer das pessoas ou das coisas de que eu gosto, elas chegam a me pesar, desde
pequena. Talvez se eu gostasse realmente com o corpo... Talvez me ligasse
mais..." (Clarice Lispector)
O pensamento dela pairava sobre as
águas. Pelo menos, era o que pensava quando os dias pareciam difíceis, e a cabeça
girava feito pião em mãos de crianças afoitas. Pairava. Não por que ela
desejasse aquietar a alma — já nem sabia se acreditava em alma, espírito ou
qualquer coisa que a ligasse a um plano supostamente espiritual —, mas pelo
simples fato de não poder perceber o mundo com o olhar simples daqueles que
apenas vivem, sem especulações ou vontade de compreender além do que é visível.
Especular era contraditoriamente sua salvação e perdição. Bastava um deslize
para que seu estado especulativo passasse de um equilíbrio contemplativo à
eufórica sensação de desconcerto. E sentia todas as coisas ruírem; seu corpo
atraído para o centro do caos, onde ela talvez nunca, certamente nunca, sairia
sem dinamitar os afetos injustamente a ela dedicados.
Persona não grata! Disseram-lhe uma vez,
duas vezes, infinitas vezes diferentes pessoas. Seu crime era não compactuar em
tudo com o modo como os afetos eram vivenciados. E pagaria sempre um alto preço
por isso. “Ah, sim, eu desejo sempre colocar as coisas em uma ordem inversa?
Mas quem determina como eu deva conciliar o exercício de um amor verdadeiro ao
exercício de um modelo que alguém determinou ser o verdadeiro?”, diria ela em
um de seus momentos de pura irritação e desdém. Às vezes se deliciava ao
perceber a ingenuidade daqueles que passam pela vida sem grandes ou nenhuma
oscilação. E sofria também, pois via resplandecer nos semblantes desses
humildemente felizes o que ela tanto procurava, mas que seria incapaz de
vivenciar plenamente. Não era oca, como alguns faziam questão de insistir.
Apenas seu coração possuía um ritmo diferente. O ritmo de quem desejando ter,
não sabe como lidar com a posse.
E ela não sabia bem o que era
sentir saudade. “Será que só se sente saudade de quem se ama muito? Não amaria
então os filhos que tive, o marido, os pais e os amigos?”. Diversas vezes
chegou a pensar que seria necessário a ocorrência de uma tragédia, a perda
definitiva de um de seus afetos, para só assim sentir-se doída com a falta,
chorar como as pessoas normais fazem quando estão distantes daqueles que dizem
amar. Esquecia-se, às vezes, da sua função maternal. Sim, ela achava a
maternidade uma função estupidamente bela, tão bela que não suportava carregar
séculos de tradição em seus ombros já calejados por outros pesos diários. Para
ela, ser mãe não era nada disso que a sociedade tinha tentado incutir em sua
mente. Não era ser capaz de abandonar a si mesma em função dos filhos; não era
protegê-los de tudo, mas, quem sabe, impulsioná-lo a situações desafiadoras, a
fim de que aprendessem, na prática, o quanto a vida é uma batalha sem fim, e
nem sempre seria possível evitar o não desejado, os infortúnios que ela nos
reserva.
Apesar de sua não compreensão
acerca do que se é ser mãe de verdade, percebia-se constrangida com a
felicidade que sentia em momentos em que a maternidade aflorava. Ela então
desejava congelar aquele instante em que era capaz de cuidar e, até mesmo,
trocar todas as outras funções que assumia socialmente apenas para ouvir
repetidamente a palavra tão áspera, tão perturbadora, mas ao mesmo tempo tão
doce e necessária: mamãe. Não entendia bem por que as mulheres eram hipervalorizadas
por carregar uma criança no ventre. “Talvez seja para que, na mesma proporção,
sejamos cobradas a assumirmos o peso do vínculo eterno, do amor sem medida. Só
se pode ser mãe de verdade, só se pode amar de verdade, quando não se age por
obrigação, mas por desejo”. E inicialmente ela não desejou ser mãe. Tornou-se.
Como uma árvore que vinga e inevitavelmente produz frutos. Porém, ao contrário
da árvore que não tem nenhuma responsabilidade sobre os frutos produzidos, ela
sabia — e por isso sofria — que aqueles seres frágeis dependiam emocionalmente
dela.
Estilhaçar, sim, estilhaçar todo o
juízo moral que havia em sua mente era o que desejava. Depois construiria seus
próprios valores, para em seguida destruí-los, não permitindo que nada se
tornasse uma ordem imutável. “Porque não quero estar conformada mesmo. Não
quero caber em uma forma, fazer parte do padrão. Que se danem os modelos,
porque eu quero é não caber no recipiente; transbordar o que há de mais humano
— e desumano também — em mim”. Era tão ingênua às vezes. Não caber em um modelo
era automaticamente criar outro modelo. Ela não compreendia que seria
impossível livrar-se do ciclo. Livrar-se, esse era o desejo recorrente.
“Livrar-se, livrar-se, livrar-se... de todas as coisas que soavam obrigatórias.
Ah! Seria então a minha salvação? Não. Não seria a minha salvação”.
E o pensamento dela pairava sobre
as águas naquela manhã nublada de domingo. Seus olhos contemplavam a beleza do
mistério cotidiano da ordem. Ou estaria mais uma vez burlando a sensação de não
pertencer aos que a desejavam tanto? Ágape. Esse amor ela vivia. Por isso
talvez eles não se dessem conta do quanto ela precisava amar a perdição que há
no amor. “Segurar a mão do outro é fácil, difícil é perpetuar o gesto durante
um percurso longo e cheio de obstáculos. Danação! O amor é danação! E tudo que
há de mais doloroso é não saber como entregar-se à sublime dor que há no amor”.
Ela não se entregava. Ou porque não aprendera, ou porque desaprendera. Isso fazia
toda a diferença.
FRANCO, Elis. In: Vozes de Eva. Org: SILVA, Daianna Quelle; AZEVEDO, Érica. Campos dos Goytacazes: Darda Editora, 2018. p. 6-8
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