sexta-feira, 6 de julho de 2018

A questão


"Mas eu nunca sei o que fazer das pessoas ou das coisas de que eu gosto, elas chegam a me pesar, desde pequena. Talvez se eu gostasse realmente com o corpo... Talvez me ligasse mais..." (Clarice Lispector)

            O pensamento dela pairava sobre as águas. Pelo menos, era o que pensava quando os dias pareciam difíceis, e a cabeça girava feito pião em mãos de crianças afoitas. Pairava. Não por que ela desejasse aquietar a alma — já nem sabia se acreditava em alma, espírito ou qualquer coisa que a ligasse a um plano supostamente espiritual —, mas pelo simples fato de não poder perceber o mundo com o olhar simples daqueles que apenas vivem, sem especulações ou vontade de compreender além do que é visível. Especular era contraditoriamente sua salvação e perdição. Bastava um deslize para que seu estado especulativo passasse de um equilíbrio contemplativo à eufórica sensação de desconcerto. E sentia todas as coisas ruírem; seu corpo atraído para o centro do caos, onde ela talvez nunca, certamente nunca, sairia sem dinamitar os afetos injustamente a ela dedicados.
            Persona não grata! Disseram-lhe uma vez, duas vezes, infinitas vezes diferentes pessoas. Seu crime era não compactuar em tudo com o modo como os afetos eram vivenciados. E pagaria sempre um alto preço por isso. “Ah, sim, eu desejo sempre colocar as coisas em uma ordem inversa? Mas quem determina como eu deva conciliar o exercício de um amor verdadeiro ao exercício de um modelo que alguém determinou ser o verdadeiro?”, diria ela em um de seus momentos de pura irritação e desdém. Às vezes se deliciava ao perceber a ingenuidade daqueles que passam pela vida sem grandes ou nenhuma oscilação. E sofria também, pois via resplandecer nos semblantes desses humildemente felizes o que ela tanto procurava, mas que seria incapaz de vivenciar plenamente. Não era oca, como alguns faziam questão de insistir. Apenas seu coração possuía um ritmo diferente. O ritmo de quem desejando ter, não sabe como lidar com a posse.
            E ela não sabia bem o que era sentir saudade. “Será que só se sente saudade de quem se ama muito? Não amaria então os filhos que tive, o marido, os pais e os amigos?”. Diversas vezes chegou a pensar que seria necessário a ocorrência de uma tragédia, a perda definitiva de um de seus afetos, para só assim sentir-se doída com a falta, chorar como as pessoas normais fazem quando estão distantes daqueles que dizem amar. Esquecia-se, às vezes, da sua função maternal. Sim, ela achava a maternidade uma função estupidamente bela, tão bela que não suportava carregar séculos de tradição em seus ombros já calejados por outros pesos diários. Para ela, ser mãe não era nada disso que a sociedade tinha tentado incutir em sua mente. Não era ser capaz de abandonar a si mesma em função dos filhos; não era protegê-los de tudo, mas, quem sabe, impulsioná-lo a situações desafiadoras, a fim de que aprendessem, na prática, o quanto a vida é uma batalha sem fim, e nem sempre seria possível evitar o não desejado, os infortúnios que ela nos reserva.
            Apesar de sua não compreensão acerca do que se é ser mãe de verdade, percebia-se constrangida com a felicidade que sentia em momentos em que a maternidade aflorava. Ela então desejava congelar aquele instante em que era capaz de cuidar e, até mesmo, trocar todas as outras funções que assumia socialmente apenas para ouvir repetidamente a palavra tão áspera, tão perturbadora, mas ao mesmo tempo tão doce e necessária: mamãe. Não entendia bem por que as mulheres eram hipervalorizadas por carregar uma criança no ventre. “Talvez seja para que, na mesma proporção, sejamos cobradas a assumirmos o peso do vínculo eterno, do amor sem medida. Só se pode ser mãe de verdade, só se pode amar de verdade, quando não se age por obrigação, mas por desejo”. E inicialmente ela não desejou ser mãe. Tornou-se. Como uma árvore que vinga e inevitavelmente produz frutos. Porém, ao contrário da árvore que não tem nenhuma responsabilidade sobre os frutos produzidos, ela sabia — e por isso sofria — que aqueles seres frágeis dependiam emocionalmente dela.
            Estilhaçar, sim, estilhaçar todo o juízo moral que havia em sua mente era o que desejava. Depois construiria seus próprios valores, para em seguida destruí-los, não permitindo que nada se tornasse uma ordem imutável. “Porque não quero estar conformada mesmo. Não quero caber em uma forma, fazer parte do padrão. Que se danem os modelos, porque eu quero é não caber no recipiente; transbordar o que há de mais humano — e desumano também — em mim”. Era tão ingênua às vezes. Não caber em um modelo era automaticamente criar outro modelo. Ela não compreendia que seria impossível livrar-se do ciclo. Livrar-se, esse era o desejo recorrente. “Livrar-se, livrar-se, livrar-se... de todas as coisas que soavam obrigatórias. Ah! Seria então a minha salvação? Não. Não seria a minha salvação”.
            E o pensamento dela pairava sobre as águas naquela manhã nublada de domingo. Seus olhos contemplavam a beleza do mistério cotidiano da ordem. Ou estaria mais uma vez burlando a sensação de não pertencer aos que a desejavam tanto? Ágape. Esse amor ela vivia. Por isso talvez eles não se dessem conta do quanto ela precisava amar a perdição que há no amor. “Segurar a mão do outro é fácil, difícil é perpetuar o gesto durante um percurso longo e cheio de obstáculos. Danação! O amor é danação! E tudo que há de mais doloroso é não saber como entregar-se à sublime dor que há no amor”. Ela não se entregava. Ou porque não aprendera, ou porque desaprendera. Isso fazia toda a diferença.

FRANCO, Elis. In: Vozes de Eva. Org: SILVA, Daianna Quelle; AZEVEDO, Érica. Campos dos Goytacazes: Darda Editora, 2018. p. 6-8


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