Era um dia quente, o que provocava nela
uma lassidão sem limites. O corpo jogado no sofá, na tentativa de encontrar um
modo de arejar o pensamento. Resolveu ler um pouco, foi à estante, olhou
atentamente as opções disponíveis. Tinha a mania de acumular livros, mesmo
sabendo que jamais leria algumas de suas aquisições. Como desejava suprimir o
desânimo que a tomara, fugiu dos temas tristes, mas também não buscou nada que
a tirasse do estado meditativo que se encontrava. Abriu um livro de frases de
Clarice Lispector, fechou-o. De repente decidiu abri-lo aleatoriamente,
desejando que a página apresentasse, como um vaticínio, algo que mobilizasse
sua vida, retirando-a do estado de inércia. Seus olhos leram Misteriosamente a gente cumpre os rituais da
vida. Não sabia o que o trecho significava no contexto do livro Um sopro de vida, não o havia lido
ainda, porém, compreendeu que, de fato, o rito se cumprira, encerrando um ciclo
de sua história.
De repente, colocou o livro na
estante como se suas mãos ardessem em chamas. Continuou procurando uma leitura
agradável. Decidiu reler alguns contos de Clarice, sem medo que as palavras da
autora provocassem nela aquela sensação de instabilidade emocional pela qual
passava todas as vezes que a lia. Dirigiu-se até a sala, recostou-se novamente
no sofá, desta vez de forma mais confortável, colocando almofadas como apoio.
Ao iniciar a leitura, encontrou em uma página amassada um poema que havia
escrito meses atrás.
Foste sol que aquece em dia frio,
canto de pássaro na aurora,
brisa suave ao entardecer.
Foste o quanto pudeste, nada mais.
Vieram o
inverno, e a desesperança,
coração fez-se impenetrável geleira,
as ondas rebelaram-se contra o cais.
Restaram as marcas na areia da praia...
para nunca mais, para nunca mais.
Aqueles versos resumiam uma história
da qual ela tentava escapar e que não havia como explicar a si ou a qualquer
pessoa que a indagasse. Às vezes, o destino nos impulsiona a seguir por vias
aparentemente planas e, por alguns momentos, temos a ilusão de que chegaremos
ao paraíso. Era o que imaginava naquele instante. Até hoje não compreendia como
pôde desafiar a razão e entregar-se à paixão de modo tão intenso; como pôde
subverter todas as regras de conduta que vivera antes de o conhecer; como teria
ido tão longe quando, na verdade, tinha plena consciência de que tudo
terminaria mal. Por que sair dos trilhos sabendo que o acidente é inevitável?
Era a pergunta que se fez no dia em que partiu para nunca mais voltar.
Vivera a seu lado momentos
maravilhosos, descobrira sensações, sentiu-se plenamente amada. No início, a
alegria dos dois era contagiante, agiam como se fossem dois aventureiros
adolescentes a descobrir os encantos da vida. Eram felizes, todos percebiam.
Mas quiseram ter além do que poderiam, as moiras não estavam de acordo com os
desejos deles. Ou melhor, os desejos deles não entravam em acordo. Stela
precisava decidir. E decidiu. Lúcio queria muito ficar, seus gestos, seu
sofrimento, as lágrimas a correr em seu rosto demonstravam isso. Mas talvez fosse
apenas posse ou a vaidade de não querer ser abandonado. Era tudo muito confuso
para ela. Ele decidiu não ficar. Pelo menos não inteiramente da forma que ela
desejava. Lúcio também estava confuso, buscava estabilidade e acreditava que
Stela não seria capaz de amá-lo para sempre.
Quando pensava na difícil relação dos
dois, lembrava-se de um poema da Rupi Kauar: ela era uma rosa/ mas quem a pegou na mão/ não tinha intenção/ de
guardá-la. O mais doloroso para Stela não era saber que ele não ficaria
definitivamente. Ela não suportava saber que tudo que ele desejava era ficar,
mas, por alguma razão, fugia da permanência. O pior de tudo era que ele não
compreendia o fato de ela não desejar mais ficar da maneira que agradava apenas
a ele. O coração de Lúcio endureceu-se, não havia mais nada a fazer.
Depois de uma longa digressão, Stela
voltou à leitura. Concentrada, folheou páginas e mais páginas, rapidamente,
pois aquelas histórias eram bem familiares a ela. Cansou-se. Levantou-se e foi
à cozinha, bebeu um pouco de água fria e retornou à sala, em um ritmo
desatinado de quem já não sabe onde estar e para aonde ir. Passou a ler o conto
Felicidade clandestina, agora
lentamente, como se buscasse nele um conforto, uma resposta nunca antes
encontrada. Ela não sabia se odiava a menina da livraria por não emprestar o
livro ou se sentia raiva da garota que tanto necessitava de um livro que não
era seu. Era ela a menina necessitada, mas era também a que podia dar.
No final da leitura, não conseguia
sentir a alegria frenética da garotinha com o livro tão desejado. Súbito,
passou a se perguntar repetidas vezes por que tanto amor se não era para ter
sido, se não era para ter durado. Ela não queria que a felicidade para ela continuasse
a ser clandestina. Lúcio não a compreendeu. Enquanto tentava se estabilizar,
pegou o livro da Rupi Kauar e foi lendo, fora da sequência, os poemas. O
telefone tocou, era Lúcio. Não o atendeu de imediato, só o fez após muita
insistência dele. Do outro lado da linha, uma voz agora desconhecida sussurrou
baixinho:
− Por que isso, amor? Por que partir
desta maneira?
Stela, sem ação, apenas leu dois dos
poemas que estavam diante de seus olhos.
“eu tive que ir embora
eu estava cansada
de deixar que você
me fizesse me sentir
qualquer coisa
menos que inteira”
“eu não fui embora porque
eu deixei de te amar
eu fui embora porque quanto mais
eu ficava menos
eu me amava”
Desligou o telefone. Fechou o livro.
Abriu-se a uma nova vida.
In: MENDES, Suellen (Org.). Por que, amor? Campo dos Goytacazes:Darda Editora, 2018, p.10-13
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário será lido.