domingo, 22 de julho de 2018

O amor exige um pouco de coragem



          O amor sempre pede de nós um pouco de coragem. Sabia disso desde que o viu pela primeira vez. Não que tivesse sido amor à primeira vista, mas já despontara nela aquele frio na barriga, e o que veio depois foi uma sucessão de loucuras e equívocos bem planejados. Nunca imaginou que algo tão furtivo fosse marcar profundamente a vida de duas criaturas muito livres para estarem presas a padrões e impedimentos. Na verdade, jamais pôde compreender as razões pelas quais o destino, se é que há destino, havia aproximado os dois. Sua vida, até então eclipsada pelas intempéries amorosas, recebia a iluminação de uma estrela mais do que cadente, um cometa avassalador.
                 Conheceram-se...
            Talvez seja preciso dizer que ela foi seduzida, fortemente arrastada pelas narrativas dele, homem do mundo, cheio de aventuras sexuais, um caso em cada porto. Era um exímio marinheiro, ainda que suas andanças fossem terrestres. Ele a seduzia, não premeditadamente, pela palavra; encantava-a através de seus relatos quentes, provocantes, despudorados. Ela, que quase nada sabia sobre sexo sem amor, sexo por sexo, estava diante de um mundo novo que a enredava aos poucos e, por mais que não soubesse ao certo o que acontecia, sentia-se bem ao ouvir cada relato, cada história de quem sabia as artimanhas de não se prender a ninguém.
            Transaram...
            Sexo por sexo, inicialmente. Pelo menos para ele, pois ela já trazia consigo um desejo de estar mais perto sempre, de penetrar aquele mundo de fantasia, volúpia e tesão descontrolados. Sexo ruim, por sinal. Estavam embriagados, final de festa, apenas dois corpos excitados buscando descarregar a tensão. No outro dia, a realidade. Prometeram não darem continuidade ao caso, continuariam colegas. Enganaram-se profundamente. O universo conspirava a favor do corpo, do desejo, eles iriam ceder diversas vezes, sem saber que, cada vez mais, o tesão aumentaria, o afeto surgiria de mansinho e não daria para fugir daquela esplêndida iluminação.
            Envolveram-se...
           Haviam decidido que eram livres. Ela, inicialmente, achou que poderia apenas ser sua parceira sexual e até gostava de vê-lo narrar suas façanhas. E veio o dia em que ele a deixou sozinha, preferindo ir ao encontro de outra. Ela percebeu, e sofreu. Ele nunca saberá o ritmo do coração dela naquele noite. Ele nunca compreenderá a sua insônia, a angústia e todos os medos atingindo-a em cheio. Ele não compreendia que ela o amava. E ela sabia que não poderia ter deixado isso acontecer.
Sem perceberem, aos poucos o laço entre eles foi apertando, passaram a ser cúmplices em tudo.  Era uma experiência diferente que viviam, só não sabiam ao certo por que viviam. Mas ele resistia, não queria entregar-se a um único corpo; isso era desconstruir seu perfil de homem pegador. E aquele amor que ela sentia a impulsionava para ele, para ele sozinho, para ele com elas. Já não conseguia controlar seu sentimento, e ia se perdendo nele, perdendo-se por ele, perdendo-se...
Veio o ciúme, ela ofegante, descumprindo o trato inicial, exigindo dele exclusividade, sofrendo antecipadamente mesmo sabendo que não tinha direito de cobrar dele um comportamento diferente do que ele tinha. Ela, confusa, querendo fugir do que sentia. Ele, confuso, querendo fugir das novas regras impostas por ela. Eles, confusos, repelindo-se e atraindo-se numa luta feroz.
Amaram-se...
E no fundo ela sabia que o inevitável aconteceria. Na verdade, desde que se envolveram, ela sempre soube que aquela história estava fadada ao fracasso; sentia-se pequenina diante da grandeza dele. Como explicar, então, o amor que faziam reluzindo no ar?  Eram momentos de êxtase, de profundo encantamento; eram dois corpos tão um, impossível pensar em uma bipartição. O inevitável.
Naquele final de tarde de dezembro ela descobriu o que era desmastreio. Tudo tão no lugar, tudo tão bagunçado. E o amor a exigir sempre um pouco de coragem. As despedidas, as continuidades. Como seu corpo sem o dele? Onde a sua vida sem a sua? Sabia o quão era difícil para ele abandonar a variedade de corpos, sabia que ele havia tentado, esforçado-se ao máximo. Sabia que havia nele certa dose de afeto, já não era mais sexo apenas. Sabia... De repente, ele a encosta na parede, segura suas mãos. Olha-a nos olhos. O inevitável.
O coração dela dispara, um calafrio a toma por completo, o medo das perguntas, o pânico das respostas. Não queria ouvi-lo, não estava preparada.
− Por que eu estou hoje aqui?
− Não sei.
− Eu poderia estar em outro lugar?
− Talvez, penso que sim.
− E por que você está aqui?
− Porque quis. Eu sempre quero estar aqui.
− Mas você sabe que eu poderia estar em outro lugar, não sabe?
− Sim. Não tenho dúvidas.
− Eu preciso lhe dizer algo, mas não sei por onde começar.
−Não precisa dizer. Eu já sei...
− Sabe? Como assim?
O inevitável.
− Mulher sempre sabe, por mais que não queira ver.
− Você é muito cheia de certezas.
− Não. Sou mesmo é cheia de dúvidas.
Silêncios...
Ela afasta-se lentamente, suas mãos gélidas não tocam mais as dele. De repente, um sussurro baixinho:
− Fique!
− O quê?
− Fique.
Ficar era uma palavra dura. Ficar significava enraizar-se sem medo. E ela tinha medo que cortassem suas raízes depois, deixando-a solta no ar.
− Preciso ir.
− Não precisa.
− O que está dizendo?
− Para você ficar. Já não sei andar sozinho.
− Impossível. Você sempre foi senhor de si.
− E tudo que fiz até então. Não percebe o quanto eu tenho ancorado aos poucos?
− Ancorar é bom ou ruim?
−É difícil dizer. Não sei bem ainda.
E o amor exigindo sempre um pouco de coragem.
− Eu mudei minha rota, fiz de sua vida a minha, ainda que não soubesse demonstrar direito. Eu também tenho medo.
− De ficar?
− Não. De ir.
− E o que faremos com os nossos medos?
− Não sei.
− Ficar não é o seu perfil. Não sei se conseguiria.
Ela deu as costas para ele, a porta abrindo-se, a porta fechando-se. Ele estático. Súbito, ela retorna, aproxima-se, encosta seu rosto no dele, abraça-o apertado. Aqueles segundos eram a eternidade. O silêncio... Amaram-se.
Satisfeitos no aconchego de braços que acolhem, de lábios que se tocam e olhares que se encontram, sorriem.
− Se ancorar é tão difícil, por que você está disposto a abandonar as ondas agitadas do mar?
            − Eu nunca tive pouso, sempre migrei. Não sabia o que era repousar a cabeça pensando na eternidade. Hoje eu sei. Você sempre diz que o amor exige de nós um pouco de coragem. Eu tenho medo, mas tenho coragem. E fico, mesmo diante de minhas incertezas, para que saiba, para que compreenda; para que eu saiba, para que eu compreenda o quanto que eu te amo...

In: FERNANDA, Mothé (Org.). O quanto que eu te amo. Campos dos Goytacazes: Darda Editora, 2017.


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