O
amor sempre pede de nós um pouco de coragem. Sabia disso desde que o viu pela
primeira vez. Não que tivesse sido amor à primeira vista, mas já despontara
nela aquele frio na barriga, e o que veio depois foi uma sucessão de loucuras e
equívocos bem planejados. Nunca imaginou que algo tão furtivo fosse marcar
profundamente a vida de duas criaturas muito livres para estarem presas a
padrões e impedimentos. Na verdade, jamais pôde compreender as razões pelas
quais o destino, se é que há destino, havia aproximado os dois. Sua vida, até
então eclipsada pelas intempéries amorosas, recebia a iluminação de uma estrela
mais do que cadente, um cometa avassalador.
Conheceram-se...
Talvez
seja preciso dizer que ela foi seduzida, fortemente arrastada pelas narrativas
dele, homem do mundo, cheio de aventuras sexuais, um caso em cada porto. Era um
exímio marinheiro, ainda que suas andanças fossem terrestres. Ele a seduzia,
não premeditadamente, pela palavra; encantava-a através de seus relatos
quentes, provocantes, despudorados. Ela, que quase nada sabia sobre sexo sem
amor, sexo por sexo, estava diante de um mundo novo que a enredava aos poucos
e, por mais que não soubesse ao certo o que acontecia, sentia-se bem ao ouvir
cada relato, cada história de quem sabia as artimanhas de não se prender a
ninguém.
Transaram...
Sexo
por sexo, inicialmente. Pelo menos para ele, pois ela já trazia consigo um
desejo de estar mais perto sempre, de penetrar aquele mundo de fantasia,
volúpia e tesão descontrolados. Sexo ruim, por sinal. Estavam embriagados,
final de festa, apenas dois corpos excitados buscando descarregar a tensão. No
outro dia, a realidade. Prometeram não darem continuidade ao caso, continuariam
colegas. Enganaram-se profundamente. O universo conspirava a favor do corpo, do
desejo, eles iriam ceder diversas vezes, sem saber que, cada vez mais, o tesão
aumentaria, o afeto surgiria de mansinho e não daria para fugir daquela esplêndida
iluminação.
Envolveram-se...
Haviam
decidido que eram livres. Ela, inicialmente, achou que poderia apenas ser sua
parceira sexual e até gostava de vê-lo narrar suas façanhas. E veio o dia em
que ele a deixou sozinha, preferindo ir ao encontro de outra. Ela percebeu, e
sofreu. Ele nunca saberá o ritmo do coração dela naquele noite. Ele nunca
compreenderá a sua insônia, a angústia e todos os medos atingindo-a em cheio.
Ele não compreendia que ela o amava. E ela sabia que não poderia ter deixado
isso acontecer.
Sem perceberem,
aos poucos o laço entre eles foi apertando, passaram a ser cúmplices em
tudo. Era uma experiência diferente que
viviam, só não sabiam ao certo por que viviam. Mas ele resistia, não queria
entregar-se a um único corpo; isso era desconstruir seu perfil de homem pegador.
E aquele amor que ela sentia a impulsionava para ele, para ele sozinho, para
ele com elas. Já não conseguia controlar seu sentimento, e ia se perdendo nele,
perdendo-se por ele, perdendo-se...
Veio o ciúme,
ela ofegante, descumprindo o trato inicial, exigindo dele exclusividade,
sofrendo antecipadamente mesmo sabendo que não tinha direito de cobrar dele um
comportamento diferente do que ele tinha. Ela, confusa, querendo fugir do que
sentia. Ele, confuso, querendo fugir das novas regras impostas por ela. Eles,
confusos, repelindo-se e atraindo-se numa luta feroz.
Amaram-se...
E no fundo ela
sabia que o inevitável aconteceria. Na verdade, desde que se envolveram, ela
sempre soube que aquela história estava fadada ao fracasso; sentia-se pequenina
diante da grandeza dele. Como explicar, então, o amor que faziam reluzindo no
ar? Eram momentos de êxtase, de profundo
encantamento; eram dois corpos tão um, impossível pensar em uma bipartição. O
inevitável.
Naquele final de
tarde de dezembro ela descobriu o que era desmastreio. Tudo tão no lugar, tudo
tão bagunçado. E o amor a exigir sempre um pouco de coragem. As despedidas, as
continuidades. Como seu corpo sem o dele? Onde a sua vida sem a sua? Sabia o
quão era difícil para ele abandonar a variedade de corpos, sabia que ele havia
tentado, esforçado-se ao máximo. Sabia que havia nele certa dose de afeto, já
não era mais sexo apenas. Sabia... De repente, ele a encosta na parede, segura
suas mãos. Olha-a nos olhos. O inevitável.
O coração dela
dispara, um calafrio a toma por completo, o medo das perguntas, o pânico das
respostas. Não queria ouvi-lo, não estava preparada.
− Por que eu
estou hoje aqui?
− Não sei.
− Eu poderia
estar em outro lugar?
− Talvez, penso
que sim.
− E por que você
está aqui?
− Porque quis.
Eu sempre quero estar aqui.
− Mas você sabe
que eu poderia estar em outro lugar, não sabe?
− Sim. Não tenho
dúvidas.
− Eu preciso lhe
dizer algo, mas não sei por onde começar.
−Não precisa
dizer. Eu já sei...
− Sabe? Como
assim?
O inevitável.
− Mulher sempre sabe,
por mais que não queira ver.
− Você é muito
cheia de certezas.
− Não. Sou mesmo
é cheia de dúvidas.
Silêncios...
Ela afasta-se
lentamente, suas mãos gélidas não tocam mais as dele. De repente, um sussurro
baixinho:
− Fique!
− O quê?
− Fique.
Ficar era uma
palavra dura. Ficar significava enraizar-se sem medo. E ela tinha medo que
cortassem suas raízes depois, deixando-a solta no ar.
− Preciso ir.
− Não precisa.
− O que está
dizendo?
− Para você
ficar. Já não sei andar sozinho.
− Impossível.
Você sempre foi senhor de si.
− E tudo que fiz
até então. Não percebe o quanto eu tenho ancorado aos poucos?
− Ancorar é bom
ou ruim?
−É difícil
dizer. Não sei bem ainda.
E o amor
exigindo sempre um pouco de coragem.
− Eu mudei minha
rota, fiz de sua vida a minha, ainda que não soubesse demonstrar direito. Eu
também tenho medo.
− De ficar?
− Não. De ir.
− E o que
faremos com os nossos medos?
− Não sei.
− Ficar não é o
seu perfil. Não sei se conseguiria.
Ela deu as
costas para ele, a porta abrindo-se, a porta fechando-se. Ele estático. Súbito,
ela retorna, aproxima-se, encosta seu rosto no dele, abraça-o apertado. Aqueles
segundos eram a eternidade. O silêncio... Amaram-se.
Satisfeitos no
aconchego de braços que acolhem, de lábios que se tocam e olhares que se encontram,
sorriem.
− Se ancorar é
tão difícil, por que você está disposto a abandonar as ondas agitadas do mar?
−
Eu nunca tive pouso, sempre migrei. Não sabia o que era repousar a cabeça
pensando na eternidade. Hoje eu sei. Você sempre diz que o amor exige de nós um
pouco de coragem. Eu tenho medo, mas tenho coragem. E fico, mesmo diante de
minhas incertezas, para que saiba, para que compreenda; para que eu saiba, para
que eu compreenda o quanto que eu te amo...
In: FERNANDA, Mothé (Org.). O quanto que eu te amo. Campos dos
Goytacazes: Darda Editora, 2017.
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