terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Aspectos sociocríticos na poética de Aleilton Fonseca


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Por Elis Franco

Texto proferido no Curso Castro Alves 2017- Academia de Letras da Bahia.


Aleilton Fonseca, acadêmico desta casa, é prosador e poeta, tendo investido, pelo menos a título de publicação, mas naquela do que nesta. No entanto, hoje, neste evento em que se discute a profícua literatura baiana, escolhi falar sobre sua poética, selecionando uma temática que me parece fundamental para que a poesia se instaure, de fato, não apenas entre um público “seleto”, acadêmico, mas para que ela possa tocar o âmago do cidadão que, sendo parte do todo social, pode refletir sobre as problemáticas que os versos de Fonseca apresentam. Desse modo, far-se-á uma leitura sociocrítica de três poemas do livro As formas do barro e outros poemas (2006).
            Para sustentar a discussão sobre uma análise sociocrítica, tomo como operador de leitura o texto “A ideia de literatura como processo civilizatório e educativo”, de Antenor Antônio Gonçalves Filho, para quem,
           

“[...]para a busca de uma compreensão mais segura do fenômeno literário, devemos partir de uma análise do homem-escritor com seus gestos argumentativos enquanto ser situado em um meio social, com seus conflitos emoldurados em utopias, sonhos, fantasias, loucura e a literatura se apresentando como uma saída a mais para a superação desses conflitos. Nesse sentido, a literatura expressa o desejo humano de durar e de romper, por meio da palavra esculpida, com as rotinas asfixiantes de sua vida.” (FILHO, 2000, p. 76-77)


            Tal visão coloca o poeta não como um artista alienado em sua torre, olhando para o céu a contemplar estrelas, mas como um sujeito enraizado em sua história, capaz de não apenas através da palavra-profética, que antecipa, mas também através da palavra-denúncia que, mesmo por si só não sendo capaz de mudar o mundo, tem o potencial de sensibilizar o leitor, fazendo-o ampliar seu horizonte crítico diante da conjuntura que vivencia e, quem sabe, tornar-se um sujeito ativo e menos alienado. Desse modo, de acordo com Filho (2000, p. 80):

A sociocrítica dispõe, portanto, de uma fronteira visível, palpável, e em consequência, uniforme: a relação do social e da forma estética. A densidade de uma obra literária se expressa quase sempre pela densidade de nossos dramas sociais e, por que não acrescentar, de nossos dramas existenciais e históricos.


         Neste ponto, a análise realizada não deve perder de vista a questão estética, a escolha exata das palavras, as construções metafóricas, o trabalho criativo com a linguagem, a fim apenas de exaltar os elementos sociocríticos. Os dois fatores complementam-se e serão aqui postos em cena, no intuito de observarmos como a palavra poética de Aleilton Fonseca, ao trazer a vida, em seu caráter histórico, complexo, problemático, para a literatura, também, aproxima a literatura da vida que nem sempre percebemos como tal, a não ser quando ela no vitima, nos atinge e nos enreda em seus laços contraditórios e asfixiantes. Passemos à análise dos poemas.
            O primeiro poema a ser analisado é “Companhia dos deuses” (FONSECA, 2006, p.23), no qual, logo nos primeiros versos, percebe-se a crítica à comercialização da fé.

Morre um deus,
outros nascem:
quaisquer se compram
entre novos e usados.

Entre templos & mercados
há deuses em liquidação:
 a cada soluço ou topada
busca-se um novo deus,
aprende-se a mesma oração.

A relação entre fé e comercialização é perceptível nas expressões “compram”, “novos e usados”,”mercados” e “liquidação”. Ao buscar uma denominação religiosa diferente, a fim de resolver os conflitos e problemas,  o fiel depara-se com o mesmo discurso, como sinalizam os versos “busca-se um novo deus,/aprende-se a mesma oração.” Além disso, os versos refletem a ideia de oferta da fé dentro da perspectiva mercadológica, visto que existe a lógica da relação comercial da liquidação, aquele que oferecer mais vantagens por menos sacrifício, certamente conquistará novos adeptos. E segue o poeta:


Um deus e suas verdades,
pronta entrega em balcão,
cada  qual com seus milagres,
embalados em ondas curtas,
em fita, em papel, papelão.

Se atende fácil aos chamados,
pelo bem do fiel ao consumo,
é descartável a curto prazo,
e até uma próxima ascensão.
                                                     
            Nas duas últimas estrofes, a lógica do mercado continua, e os termos “pronta entrega”, balcão”, “embalados”, “atende”, “consumo” e “descartável” indicam outros aspectos das transações comerciais.  Ademais, o eu lírico, antenado à regra do consumo contemporâneo que é, sobretudo, a satisfação passageira e a realimentação do desejo e da procura, conclui o poema revelando o quanto, nem as divindades, pois aqui não se trata apenas do Deus em maiúscula dos cristãos,  escapa aos modos atuais de aquisição de produtos, já que nem eles  conseguem, sem uma propaganda que satisfaça às vontades individuais, manter a fé do fiel que, para além das necessidades espirituais, busca a satisfação das necessidades corporais, materiais, as quais, nem sempre, são atendidas pelos deuses encontrados em tantos templos/mercados.
            Em “Torres e castelos” (FONSECA, 2006, p.25), outra reflexão cara aos nossos tempos é apresentada: a insegurança que atinge todas as classes sociais. Eis o poema:

Encastelados ou em torres,
protege-se do futuro
o homem, em suas apólices
de seguro, mas, inseguro

instala os olhos ao redor,
e tranca a alma no cofre,
evita sua sombra ao sol,
e em cada esquina sofre

a  dor de quem, tendo tudo,
perde o sentido do mundo,
e dentro de um olhar mudo
o medo é seu ser profundo.

            As primeiras palavras do poema remetem-nos a uma ambientação considerada segura, contudo, em seguida, o eu lírico desconstrói tal perspectiva. Ainda que o poeta tenha selecionado termos como castelo e torres, pode-se fazer uma analogia a espaços contemporâneos como os condomínios, os quais, aparentemente, oferecem uma condição de segurança mais adequada. É nesse momento que a sensibilidade poética se instaura e o eu lírico reflete sobre as implicações que os problemas sociais trazem para os indivíduos. Ou seja, em busca da segurança desejada, aqueles que são providos de condição financeira satisfatória investem em equipamentos, limitam os espaços de circulação e, como resultado, deixam de usufruir da totalidade espacial da cidade e, pior, vivenciam a experiência do medo da socialização. Para além do que já foi pontuado, cabe ressaltar o olhar crítico do poeta que parece nos querer fazer enxergar o quanto fazer parte de uma classe social mais abastada não torna o cidadão imune às consequências das mazelas sociais. E aqui fica, de minha parte e por uma provocação que o poema suscitou, um questionamento: além das medidas individuais de proteção, o que os cidadãos, juntos, podem fazer para, independente da classe a que pertencem, possam transitar e habitar seguro em/no mundo, livres da sensação de aprisionamento que a insegurança provoca?
            Para finalizar nossa análise, passemos ao poema “Consummatum est” (FONSCA, 2006,p.27 e 28), ampliando, assim,  o olhar sociocrítico sobre a poética de Aleilton Fonseca.

Compre: beba, coma, vista
pegue, passe, pague, gaste-se
entre,coma, entre em coma
vista bacana, beba bacana
babe, beba, gaste a grana
compre linha, linho, lã.

Use, abuse, lambuze
compre, beba, coma, vista
à vista, a prazo, perca a vista
beba omo lave com coca
com bom brio calce arisco
coma sapa vista patos.

            O problema do consumismo exarcerbado, motivado pelo capitalismo, é denunciado nos versos deste poema. Em um tom concretista, limitando as palavras, mas as selecionando de modo a atingirem pleno significado, o poeta, através do diversos imperativos, brinca com as palavras, como em “coma”, no sentido de alimentar-se, e “entre em coma”, a fim de inserir o leitor no ambiente do consumo. No verso “com bom brio calce arisco”, há a referência a marcas reconhecidas, porém, brincando com os termos, o eu lírico pede-nos brio, amor-próprio, dignidade. Na sequência temos:

Curta iogurte e cole e forme
o que vale por um tabefinho,
tome tédio, coma remédio
pinte o sete no cerebelo
implante semente de cabelo
fume o colorido, o forte.

Pague por boa morte
compre a grande sorte
gaste saúde, remoce
com creme ou se creme
ou alugue um ataúde
ou troque de coração.

            Nas estrofes anteriores, a sequência de imperativos continua e o jogo com as palavras também, como em “gaste saúde, remoce/ com creme ou se creme”, ou seja, invista em tratamentos estéticos e rejuvenesça ou aguarde a morte que virá, independente da aparência exterior. Em todos os setores da sociedade a lógica é consumir continuamente não apenas o que é necessário, mas o que se deseja, sem limites. E mais:

Beba um rim usado
coma carro importado
viaje, em pêlo, imundo
vague pelo mundo
dê o pouco a quem tem muito
propague  cartão de crédito.

Cheque o seu cheque e mate-se:
empreste-se, suco ou muco,
ao consumo, à soma, avaro,
consuma-se de vez em vão,
corra, suma pelo ralo, morra,
mas ainda compre: um caixão.

            Os versos finais apresentam a crítica mais acentuada ao consumismo, apontando os problemas vivenciados pelos sujeitos caso entrem no jogo do mercado, sobretudo os endividamentos com cartões de crédito e cheques. No último verso, “mas ainda compre: um caixão.”, o eu lírico, mesmo ciente de que comprá-lo é uma situação irremediável para aqueles que não passarão por outro processo de sepultamento, parece indicar que, para aqueles que se satisfazem em comprar sem refletir (observe que muitos verbos utilizados no poema não condizem com a ação do produto a ser consumido),  o último consolo será morrer consumindo e, certamente,  até na morte, se não tiver optado antes, alguém irá buscar o melhor produto, nem sempre pela necessidade, mas pelo status que este  possa trazê-lo em seu momento final.
            Penso que os poemas analisados, para além de uma literatura fechada em seus signos e símbolos linguísticos, cumpre o papel de colaborar para o processo civilizatório e educativo, pois “[...] a literatura sem ter  a pretensão de nos ensinar alguma coisa, acaba por nos ensinar muito mais.” (FILHO, p. 90). Concluo tentando responder, diante da leitura dos poemas de Aleilton Fonseca, à pergunta de Filho: “Será que o mundo hoje (e talvez sempre) presta atenção ao que está acontecendo na literatura? E ao contrário: Será que a literatura presta atenção ao que acontece no mundo hoje?”. Se o mundo inteiro não se importa, uma parte dele, como nós e tantos outros leitores, sim; se todos os poetas e prosadores não se importam, uma parte deles, como Fonseca, sim. E isso nos anima a acreditar no poder da literatura e sua palavra carregada de sentido.
           



REFERÊNCIAS

FILHO, Antenor Antônio Gonçalves. A ideia de literatura como processo civilizatório e educativo. In: ______:  Educação e literatura. Rio de Janeiro, DP&A, 2000. p. 73-110
FONSECA, Aleiton. As fomas do barro & outros poemas. Salvador: EPP Publicações e Publicidade, 2006.











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