Por Elis Franco
Texto proferido no Curso Castro Alves 2017- Academia de Letras da Bahia.
Aleilton Fonseca, acadêmico
desta casa, é prosador e poeta, tendo investido, pelo menos a título de
publicação, mas naquela do que nesta. No entanto, hoje, neste evento em que se discute
a profícua literatura baiana, escolhi falar sobre sua poética, selecionando uma
temática que me parece fundamental para que a poesia se instaure, de fato, não
apenas entre um público “seleto”, acadêmico, mas para que ela possa tocar o
âmago do cidadão que, sendo parte do todo social, pode refletir sobre as
problemáticas que os versos de Fonseca apresentam. Desse modo, far-se-á uma
leitura sociocrítica de três poemas do livro As formas do barro e outros poemas (2006).
Para sustentar a discussão sobre uma análise sociocrítica,
tomo como operador de leitura o texto “A ideia de literatura como processo
civilizatório e educativo”, de Antenor Antônio Gonçalves Filho, para quem,
“[...]para a
busca de uma compreensão mais segura do fenômeno literário, devemos partir de
uma análise do homem-escritor com seus gestos argumentativos enquanto ser
situado em um meio social, com seus conflitos emoldurados em utopias, sonhos,
fantasias, loucura e a literatura se apresentando como uma saída a mais para a
superação desses conflitos. Nesse sentido, a literatura expressa o desejo
humano de durar e de romper, por meio da palavra esculpida, com as rotinas
asfixiantes de sua vida.” (FILHO, 2000, p. 76-77)
Tal visão coloca o poeta não como um
artista alienado em sua torre, olhando para o céu a contemplar estrelas, mas
como um sujeito enraizado em sua história, capaz de não apenas através da
palavra-profética, que antecipa, mas também através da palavra-denúncia que,
mesmo por si só não sendo capaz de mudar o mundo, tem o potencial de sensibilizar
o leitor, fazendo-o ampliar seu horizonte crítico diante da conjuntura que
vivencia e, quem sabe, tornar-se um sujeito ativo e menos alienado. Desse modo,
de acordo com Filho (2000, p. 80):
A
sociocrítica dispõe, portanto, de uma fronteira visível, palpável, e em consequência,
uniforme: a relação do social e da forma estética. A densidade de uma obra
literária se expressa quase sempre pela densidade de nossos dramas sociais e,
por que não acrescentar, de nossos dramas existenciais e históricos.
Neste
ponto, a análise realizada não deve perder de vista a questão estética, a
escolha exata das palavras, as construções metafóricas, o trabalho criativo com
a linguagem, a fim apenas de exaltar os elementos sociocríticos. Os dois
fatores complementam-se e serão aqui postos em cena, no intuito de observarmos
como a palavra poética de Aleilton Fonseca, ao trazer a vida, em seu caráter
histórico, complexo, problemático, para a literatura, também, aproxima a
literatura da vida que nem sempre percebemos como tal, a não ser quando ela no vitima,
nos atinge e nos enreda em seus laços contraditórios e asfixiantes. Passemos à
análise dos poemas.
O primeiro poema a ser analisado é
“Companhia dos deuses” (FONSECA, 2006, p.23), no qual, logo nos primeiros
versos, percebe-se a crítica à comercialização da fé.
Morre
um deus,
outros
nascem:
quaisquer
se compram
entre
novos e usados.
Entre
templos & mercados
há
deuses em liquidação:
a cada soluço ou topada
busca-se
um novo deus,
aprende-se
a mesma oração.
A relação entre fé e comercialização é
perceptível nas expressões “compram”, “novos e usados”,”mercados” e
“liquidação”. Ao buscar uma denominação religiosa diferente, a fim de resolver
os conflitos e problemas, o fiel
depara-se com o mesmo discurso, como sinalizam os versos “busca-se um novo
deus,/aprende-se a mesma oração.” Além disso, os versos refletem a ideia de
oferta da fé dentro da perspectiva mercadológica, visto que existe a lógica da
relação comercial da liquidação, aquele que oferecer mais vantagens por menos
sacrifício, certamente conquistará novos adeptos. E segue o poeta:
Um
deus e suas verdades,
pronta
entrega em balcão,
cada qual com seus milagres,
embalados
em ondas curtas,
em
fita, em papel, papelão.
Se
atende fácil aos chamados,
pelo
bem do fiel ao consumo,
é
descartável a curto prazo,
e
até uma próxima ascensão.
Nas duas últimas estrofes, a lógica
do mercado continua, e os termos “pronta entrega”, balcão”, “embalados”,
“atende”, “consumo” e “descartável” indicam outros aspectos das transações
comerciais. Ademais, o eu lírico,
antenado à regra do consumo contemporâneo que é, sobretudo, a satisfação
passageira e a realimentação do desejo e da procura, conclui o poema revelando
o quanto, nem as divindades, pois aqui não se trata apenas do Deus em maiúscula
dos cristãos, escapa aos modos atuais de
aquisição de produtos, já que nem eles conseguem, sem uma propaganda que satisfaça às
vontades individuais, manter a fé do fiel que, para além das necessidades
espirituais, busca a satisfação das necessidades corporais, materiais, as
quais, nem sempre, são atendidas pelos deuses encontrados em tantos
templos/mercados.
Em “Torres e castelos” (FONSECA,
2006, p.25), outra reflexão cara aos nossos tempos é apresentada: a insegurança
que atinge todas as classes sociais. Eis o poema:
Encastelados
ou em torres,
protege-se
do futuro
o
homem, em suas apólices
de
seguro, mas, inseguro
instala
os olhos ao redor,
e
tranca a alma no cofre,
evita
sua sombra ao sol,
e
em cada esquina sofre
a dor de quem, tendo tudo,
perde
o sentido do mundo,
e
dentro de um olhar mudo
o
medo é seu ser profundo.
As primeiras palavras do poema
remetem-nos a uma ambientação considerada segura, contudo, em seguida, o eu
lírico desconstrói tal perspectiva. Ainda
que o poeta tenha selecionado termos como castelo e torres, pode-se fazer uma
analogia a espaços contemporâneos como os condomínios, os quais, aparentemente,
oferecem uma condição de segurança mais adequada. É nesse momento que a
sensibilidade poética se instaura e o eu lírico reflete sobre as implicações
que os problemas sociais trazem para os indivíduos. Ou seja, em busca da
segurança desejada, aqueles que são providos de condição financeira
satisfatória investem em equipamentos, limitam os espaços de circulação e, como
resultado, deixam de usufruir da totalidade espacial da cidade e, pior, vivenciam
a experiência do medo da socialização. Para além do que já foi pontuado, cabe ressaltar o olhar crítico do poeta que
parece nos querer fazer enxergar o quanto fazer parte de uma classe social mais
abastada não torna o cidadão imune às consequências das mazelas sociais. E aqui
fica, de minha parte e por uma provocação que o poema suscitou, um
questionamento: além das medidas individuais de proteção, o que os cidadãos,
juntos, podem fazer para, independente da classe a que pertencem, possam
transitar e habitar seguro em/no mundo, livres da sensação de aprisionamento
que a insegurança provoca?
Para finalizar nossa análise,
passemos ao poema “Consummatum est” (FONSCA,
2006,p.27 e 28), ampliando, assim, o
olhar sociocrítico sobre a poética de Aleilton Fonseca.
Compre:
beba, coma, vista
pegue,
passe, pague, gaste-se
entre,coma,
entre em coma
vista
bacana, beba bacana
babe,
beba, gaste a grana
compre
linha, linho, lã.
Use,
abuse, lambuze
compre,
beba, coma, vista
à
vista, a prazo, perca a vista
beba
omo lave com coca
com
bom brio calce arisco
coma
sapa vista patos.
O problema do consumismo exarcerbado,
motivado pelo capitalismo, é denunciado nos versos deste poema. Em um tom
concretista, limitando as palavras, mas as selecionando de modo a atingirem
pleno significado, o poeta, através do diversos imperativos, brinca com as
palavras, como em “coma”, no sentido de alimentar-se, e “entre em coma”, a fim
de inserir o leitor no ambiente do consumo. No verso “com bom brio calce
arisco”, há a referência a marcas reconhecidas, porém, brincando com os termos,
o eu lírico pede-nos brio, amor-próprio, dignidade. Na sequência temos:
Curta
iogurte e cole e forme
o
que vale por um tabefinho,
tome
tédio, coma remédio
pinte
o sete no cerebelo
implante
semente de cabelo
fume
o colorido, o forte.
Pague
por boa morte
compre
a grande sorte
gaste
saúde, remoce
com
creme ou se creme
ou
alugue um ataúde
ou
troque de coração.
Nas estrofes anteriores, a sequência
de imperativos continua e o jogo com as palavras também, como em “gaste saúde,
remoce/ com creme ou se creme”, ou seja, invista em tratamentos estéticos e
rejuvenesça ou aguarde a morte que virá, independente da aparência exterior. Em
todos os setores da sociedade a lógica é consumir continuamente não apenas o
que é necessário, mas o que se deseja, sem limites. E mais:
Beba um rim usado
coma
carro importado
viaje,
em pêlo, imundo
vague
pelo mundo
dê
o pouco a quem tem muito
propague cartão de crédito.
Cheque
o seu cheque e mate-se:
empreste-se, suco ou
muco,
ao
consumo, à soma, avaro,
consuma-se
de vez em vão,
corra,
suma pelo ralo, morra,
mas
ainda compre: um caixão.
Os versos finais apresentam a
crítica mais acentuada ao consumismo, apontando os problemas vivenciados pelos
sujeitos caso entrem no jogo do mercado, sobretudo os endividamentos com
cartões de crédito e cheques. No último verso, “mas ainda compre: um caixão.”,
o eu lírico, mesmo ciente de que comprá-lo é uma situação irremediável para
aqueles que não passarão por outro processo de sepultamento, parece indicar
que, para aqueles que se satisfazem em comprar sem refletir (observe que muitos
verbos utilizados no poema não condizem com a ação do produto a ser consumido),
o último consolo será morrer consumindo
e, certamente, até na morte, se não
tiver optado antes, alguém irá buscar o melhor produto, nem sempre pela
necessidade, mas pelo status que
este possa trazê-lo em seu momento
final.
Penso que os poemas analisados, para
além de uma literatura fechada em seus signos e símbolos linguísticos, cumpre o
papel de colaborar para o processo civilizatório e educativo, pois “[...] a
literatura sem ter a pretensão de nos
ensinar alguma coisa, acaba por nos ensinar muito mais.” (FILHO, p. 90).
Concluo tentando responder, diante da leitura dos poemas de Aleilton Fonseca, à
pergunta de Filho: “Será que o mundo hoje (e talvez sempre) presta atenção ao
que está acontecendo na literatura? E ao contrário: Será que a literatura
presta atenção ao que acontece no mundo hoje?”. Se o mundo inteiro não se
importa, uma parte dele, como nós e tantos outros leitores, sim; se todos os
poetas e prosadores não se importam, uma parte deles, como Fonseca, sim. E isso
nos anima a acreditar no poder da literatura e sua palavra carregada de
sentido.
REFERÊNCIAS
FILHO,
Antenor Antônio Gonçalves. A ideia de literatura como processo civilizatório e
educativo. In: ______: Educação e literatura. Rio de Janeiro,
DP&A, 2000. p. 73-110
FONSECA,
Aleiton. As fomas do barro & outros
poemas. Salvador: EPP Publicações e Publicidade, 2006.
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