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"...a "literatura" pode ser tanto uma questão daquilo que as pessoas fazem com a escrita, como daquilo que a escrita faz com as pessoas."(Terry Eagleton)
“todo ponto de vista é a vista de um ponto.”
(Leonardo Boff)
Certa vez, participando de um
evento para professores, ouvi da palestrante uma história muito interessante.
Ela nos contou que, por ocasião da celebração da páscoa, decidiu comprar
bacalhau e couve para o almoço. No dia anterior à comemoração, precisou sair
com a filha, deixando a casa sob os cuidados da empregada.
Quando, no
domingo, ela abriu a geladeira para separar os ingredientes, nada encontrou.
Chamou a filha e relatou o ocorrido, cogitando que a empregada poderia, por
algum motivo desconhecido, ter levado o bacalhau e a couve para casa. Sem saber
o que realmente havia acontecido, voltou ao supermercado e fez novas compras,
preparando o almoço como planejado.
Na segunda-feira pela manhã, a empregada chegou com o sorriso largo e foi
inquirida sobre o destino do bacalhau e da couve. Espantada, disse que, para
facilitar a vida da patroa, havia colocado o bacalhau em uma vasilha com água e
cortado a couve, pondo-os na geladeira.
Tal não foi a
surpresa da patroa, ao perceber que foi incapaz de encontrar os ingredientes. E
tudo se explica pelo simples fato de ela está procurando o que para ela era
óbvio: um quilo de bacalhau embalado e folhas de couve inteiras. No entanto,
aquilo que ela procurava não assumia mais a mesma forma.
Essa história, aparentemente tão boba, ajuda-nos a refletir acerca de
nossas certezas sobre as coisas. Aquilo que nos parece óbvio pode não ser tão
claro para outras pessoas, gerando, assim, equívocos e desencontros. Aquilo que
eu tento fazer o outro ver, a partir do modelo que disponho, pode não estar
sendo percebido pelo outro da mesma maneira.
Além disso, chega um momento da vida que é necessário fugir da obviedade;
não nos acostumarmos com um olhar incapaz de perceber além do que temos como
parâmetro. Afinal, perceber nada mais é do que conhecer por meio dos sentidos.
E devemos ser capazes de usar nossos sentidos para reconhecer as mudanças pelas
quais o mundo passa, ou não conseguiremos fazer uso daquilo que julgamos
conhecimento adquirido.
A couve e o bacalhau continuam na geladeira. Porém, só será capaz de
fazer uso deles aquele que possuir a habilidade de (des)construir formas e
conceitos que já não atendem mais ao contexto vivido. Reconhecer as mudanças
não necessariamente para aceitá-las, mas para que não passemos por ridículos ao
não sabermos agir, prudentemente, quando elas se apresentarem a nós.
28/02/15
FRANCO, Elis. Memórias afetivas. 2ª ed. ampliada. Salvador: Cogito, 2022. p. 25-25
Muitos são
os professores que passaram pela nossa vida, desde os anos iniciais até a nossa
formação adulta, e, sem sombra de dúvidas, vários deles nunca serão esquecidos,
seja pelo que fizeram de bom ou pelas artes de ruindade a que nos submeteram
cotidianamente. São tantas histórias cômicas e trágicas que, às vezes, chego a
pensar se ser professor é um dom ou, como defendeu Sartre, não nascemos
condicionados a nada, mas podemos nos moldar e agir bem em qualquer tarefa,
desde que nos empenhemos o bastante.
Entre as
minhas professoras megeras, aterrorizadoras (todos os adjetivos fazem parte da
minha memória da infância e adolescência, por isso, pode ser que ela não fosse
tão megera assim), lembro-me de uma chamada Nilzete. Além do tom de voz
irritante que ela tinha, ensinava matemática; para a infelicidade geral da
nação, já que esta é uma material amedrontadora para boa parte do alunado.
Nilzete ensinou-me em mais de uma série, não sei precisar o tempo. E mesmo
tendo concluído a educação básica há 20 anos, sempre que eu passo pela escola
onde estudei, lembro-me de seus sermões irritantes, de alguém que parecia não
querer estar onde estava; pelo menos era o que eu pensava na época.
Hoje, porém, acho que ela sabia da
dificuldade que era lidar com a indisciplina e promover a aprendizagem, e
talvez essa era a forma que tinha de tentar fazer com que nós aprendêssemos
algo. Mas existiram outros professores do perfil dela. No entanto, os bons
mestres que tive, os afetivos, certamente compõem um número bem maior. Posso
citar as professora Iraci, Nadja, Márcia Aparecida e Noelice, que era agoniadinha, mas
gente boa; o professor Reinaldo e tantos outros. Porém, por alguma razão, há
uma professora que marcou a minha vida e dela eu não consigo lembrar-me de nada
negativo: Dineia.
Eu costumo acreditar que criei uma
história sobre ela, pois a impressão que eu tenho é que tenha sido minha professora
a vida toda, começando na alfabetização e, posteriormente, no ensino
fundamental e médio. Se Dineia não foi a minha primeira professora, talvez a
que ocupou esse lugar tenha sido tão afetiva quanto ela, então, ao me esquecer
do nome da outra, transferi a importância que teve para ela. Dineia sempre foi
muito solicita, organizava passeios e eventos na escola, em parceria com
Noelice. As duas viviam juntas. Era algo além da lição para a prova.
Hoje eu também sou professora e,
cada vez que repenso minha prática educativa, no fundo, fico com vontade de, no
futuro, ser uma lembrança positiva para as inúmeras vidas que passaram e
passarão por minhas mãos. Tenho percebido que, além do conteúdo programático, a
nossa responsabilidade é ensinar o afeto, sobretudo quando vivemos em um
momento tão carente de afeição e compreensão. Isso, em parte e na prática,
aprendi na universidade, com as professoras Alana, Elvya e Nadja, mestras nos
cuidados e na escuta. E sobre elas ainda escreverei um dia.
17/09/2017
FRANCO, Elis. Memórias afetivas. 2ª ed. ampliada. Salvador: Cogito, 2022. p. 23-24
“Continuamente
vemos novidades”
(Camões)
Estive fazendo uma análise de quanta coisa mudou em minhas
quase quatro décadas de vida. Digo de vida e não de existência, pois acho que
só passei a existir depois que tomei consciência de que eu era um ser no mundo,
então, devo ter perdido aí uns aninhos. Fiquei surpreendida ao analisar apenas
um item da lista: como eu tenho ouvido músicas durante esse período.
Lembrei-me, então, da época em que existiam as radiolas, os radinhos de pilha
eram também um sucesso, e os que possuíam um gravador de fita cassete nem se
fala. Era um tempo bom demais!
Na minha casa havia uma radiola, mas eu
não tenho muita lembrança do que se ouvia nela. Sei apenas que devo ter
aproveitado um pouco daquela tecnologia, pois, até hoje, tenho dois discos, do
início da década de noventa, guardados, não pelo fato de serem discos, mas porque
são de uma banda que eu sou fã. Uma pena não poder tocá-los, já que não sei que
fim levou a radiola. Sobre as fitas cassetes, tenho lembranças boas e ruins.
Bom era ficar ouvindo um programa na rádio, esperar sua música preferida e
apertar o botão para gravar. E aquele registro ficava gravado para tocarmos quando
quiséssemos.
Melhor ainda foi quando lançaram os CDs,
porém, como eram caros, às vezes tínhamos que continuar com nossa fitinha, ou pedíamos
a uma amigo para reproduzir uma cópia do CD para nós. Mas, como nossa
felicidade é clandestina, como disse Clarice Lispector, quando menos
imaginávamos a fita enroscava e perdíamos tudo; quando tínhamos oportunidade,
pegávamos uma caneta e tentávamos colocá-la no devido lugar. Era uma lástima!
De repente, as nossas fitas saíram de circulação, o mercado fonográfico
investiu pesado no novo modelo de venda. Eu adorava comprar o CD, olhar o
encarte, ler as letras das músicas, descobrir os compositores. Era um ritual!
Até o momento em que eles apareciam arranhados.
E veio a pirataria... Deixou-se de
investir na produção de CDs e, quando produziam, eram de uma pobreza, os
encartes foram desaparecendo. Agora os artistas criam álbuns virtuais, a
internet é a responsável por divulgar os novos hits no Spotify, Palco MP3 e tantos outros canais de divulgação. E
eu perdi meu rito. Reconheço, porém, que os recursos atuais possibilitam uma
maior democratização da música: baixamos, compartilhamos. Isso é bom. E viva o smartphone!
Só que eu,“dinossáurica” que sou, apesar
de conviver bem com esse novo modo de escuta musical, entendendo, inclusive,
que facilita bastante a minha vida, sinto saudade dos encartes, das letras ali,
diante de meus olhos, enquanto eu dava uma pausa no dia, não apenas para ouvir
uma canção, mas para aprendê-la em cada detalhe: admirar a arte da capa, as
fotografias dos artistas. Ainda bem que, em meio à crise nas vendas de CDs,
ainda há alguns poucos artistas que permitem que meu ritual antigo continue.
Uma hora, quem sabe, eu deixo de ser saudosista.
29/08/2017
Franco, Elis. Memórias afetivas. 2ª ed. ampliada. Salvador: Cogito, 2022. p.21-22
Sou da época que
máquina fotográfica era artigo de luxo e, quando precisávamos de uma
fotografia, em momentos celebrativos, deveríamos contratar um fotógrafo, nem
sempre um profissional, mas alguém que possuía uma máquina de qualidade
discutível. Era horrível não saber como saímos na foto e, ao recebermos os
retratos, como até hoje chama minha mãe, estávamos lá com olhos fechados ou
vermelhos, numa pose meio esquisita, e nada poderíamos fazer a não ser nos
contentarmos com aquele registro horroroso.
Quando eu comecei a
trabalhar, comprei uma máquina dessas e, a partir de então, pude ir registrando
um pouco mais os momentos vividos: comprava o filme de vinte e quatro ou trinta
e seis poses, pilhas, e corria o risco de vê-lo “queimar”. Tínhamos todo um
cuidado para não desperdiçarmos o filme, não era fácil ceder uma pose para
alguém. Assim que batíamos todas as fotos, corríamos até uma casa especializada
em revelação e ficávamos torcendo para que tivéssemos saído bem na fita.
Depois, as máquinas
digitais ficaram mais acessíveis e podíamos observar a imagem e descartá-la,
caso ela não estivesse boa. Isso diminuiu um pouco a ansiedade que sentíamos.
Em seguida, os aparelhos celulares democratizaram o direito à imagem, ficou
fácil registrar as banalidades ou os raros momentos vividos; ficou fácil
deletar a foto indesejada, modificá-la, distorcer a realidade ainda mais.
Perdeu-se, na maioria das vezes, aquele rito de imprimir as fotografias e
guardá-las em álbum. Nossas imagens, hoje, são dessacralizadas nas redes
sociais.
Eu, talvez por ser uma
pessoa “dinossáurica”, continuo revelando minhas fotos, assim como prefiro
livos impressos e gosto de comprar cd’s. Tenho vários álbuns, com as fotos
cronologicamente organizadas. Minhas fotografias contam um pouco da minha
história. Todas as vezes que retiro meus álbuns do armário e olho minhas imagens,
as imagens de meus parentes e amigos, é como se eu estivesse revendo a minha
história; percebo, inclusive, que eu já vivi momentos maravilhosos, os quais
superam os desafios vividos.
Ao rever cada foto,
percebo que muitas pessoas ficaram para trás, amigos de infância que eu não sei
que destino levaram. Eu sinto uma saudade gostosa. Às vezes, dou de cara com alguém que já não
vive mais, entristeço-me; outras, sorriu ao pensar no momento em que aquele
registro foi feito. Nessa rememoração, há uma parte de minha vida que me
escapa: os meus primeiros anos. Eu tenho raríssimas fotos de minha infância, e
apenas a partir dos sete anos. É a minha lacuna existencial... Só posso
preenchê-la a partir dos relatos que outros fazem de mim, ou da minha memória
imaginativa que, certamente, me trai. E dói não saber como fui no início, ainda
que não saiba, também, de que serviria saber.
13/08/17
FRANCO, Elis. Memórias afeticas. 2º ed. ampliada. Salvador: Cogito, 2022. p.19-20