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terça-feira, 2 de setembro de 2025

O não (re)conhecido- Elis Franco

 


“todo ponto de vista é a vista de um ponto.”

(Leonardo Boff)

 

Certa vez, participando de um evento para professores, ouvi da palestrante uma história muito interessante. Ela nos contou que, por ocasião da celebração da páscoa, decidiu comprar bacalhau e couve para o almoço. No dia anterior à comemoração, precisou sair com a filha, deixando a casa sob os cuidados da empregada.

      Quando, no domingo, ela abriu a geladeira para separar os ingredientes, nada encontrou. Chamou a filha e relatou o ocorrido, cogitando que a empregada poderia, por algum motivo desconhecido, ter levado o bacalhau e a couve para casa. Sem saber o que realmente havia acontecido, voltou ao supermercado e fez novas compras, preparando o almoço como planejado.

         Na segunda-feira pela manhã, a empregada chegou com o sorriso largo e foi inquirida sobre o destino do bacalhau e da couve. Espantada, disse que, para facilitar a vida da patroa, havia colocado o bacalhau em uma vasilha com água e cortado a couve, pondo-os na geladeira.

     Tal não foi a surpresa da patroa, ao perceber que foi incapaz de encontrar os ingredientes. E tudo se explica pelo simples fato de ela está procurando o que para ela era óbvio: um quilo de bacalhau embalado e folhas de couve inteiras. No entanto, aquilo que ela procurava não assumia mais a mesma forma.

         Essa história, aparentemente tão boba, ajuda-nos a refletir acerca de nossas certezas sobre as coisas. Aquilo que nos parece óbvio pode não ser tão claro para outras pessoas, gerando, assim, equívocos e desencontros. Aquilo que eu tento fazer o outro ver, a partir do modelo que disponho, pode não estar sendo percebido pelo outro da mesma maneira.

           Além disso, chega um momento da vida que é necessário fugir da obviedade; não nos acostumarmos com um olhar incapaz de perceber além do que temos como parâmetro. Afinal, perceber nada mais é do que conhecer por meio dos sentidos. E devemos ser capazes de usar nossos sentidos para reconhecer as mudanças pelas quais o mundo passa, ou não conseguiremos fazer uso daquilo que julgamos conhecimento adquirido.

            A couve e o bacalhau continuam na geladeira.  Porém, só será capaz de fazer uso deles aquele que possuir a habilidade de (des)construir formas e conceitos que já não atendem mais ao contexto vivido. Reconhecer as mudanças não necessariamente para aceitá-las, mas para que não passemos por ridículos ao não sabermos agir, prudentemente, quando elas se apresentarem a nós.

28/02/15


FRANCO, Elis. Memórias afetivas. 2ª ed. ampliada. Salvador: Cogito, 2022. p. 25-25

Lições para a vida - Elis Franco



“O professor medíocre conta.
O bom professor explica.
O professor superior demonstra.
O grande professor inspira.”
 
“Um bom mestre não somente ensina a pensar,
mas também a maneira de estar devidamente no mundo.”
(Josep M. Esquirol)

 

            Muitos são os professores que passaram pela nossa vida, desde os anos iniciais até a nossa formação adulta, e, sem sombra de dúvidas, vários deles nunca serão esquecidos, seja pelo que fizeram de bom ou pelas artes de ruindade a que nos submeteram cotidianamente. São tantas histórias cômicas e trágicas que, às vezes, chego a pensar se ser professor é um dom ou, como defendeu Sartre, não nascemos condicionados a nada, mas podemos nos moldar e agir bem em qualquer tarefa, desde que nos empenhemos o bastante.

            Entre as minhas professoras megeras, aterrorizadoras (todos os adjetivos fazem parte da minha memória da infância e adolescência, por isso, pode ser que ela não fosse tão megera assim), lembro-me de uma chamada Nilzete. Além do tom de voz irritante que ela tinha, ensinava matemática; para a infelicidade geral da nação, já que esta é uma material amedrontadora para boa parte do alunado. Nilzete ensinou-me em mais de uma série, não sei precisar o tempo. E mesmo tendo concluído a educação básica há 20 anos, sempre que eu passo pela escola onde estudei, lembro-me de seus sermões irritantes, de alguém que parecia não querer estar onde estava; pelo menos era o que eu pensava na época.

Hoje, porém, acho que ela sabia da dificuldade que era lidar com a indisciplina e promover a aprendizagem, e talvez essa era a forma que tinha de tentar fazer com que nós aprendêssemos algo. Mas existiram outros professores do perfil dela. No entanto, os bons mestres que tive, os afetivos, certamente compõem um número bem maior. Posso citar as professora Iraci, Nadja, Márcia  Aparecida e Noelice, que era agoniadinha, mas gente boa; o professor Reinaldo e tantos outros. Porém, por alguma razão, há uma professora que marcou a minha vida e dela eu não consigo lembrar-me de nada negativo: Dineia.

Eu costumo acreditar que criei uma história sobre ela, pois a impressão que eu tenho é que tenha sido minha professora a vida toda, começando na alfabetização e, posteriormente, no ensino fundamental e médio. Se Dineia não foi a minha primeira professora, talvez a que ocupou esse lugar tenha sido tão afetiva quanto ela, então, ao me esquecer do nome da outra, transferi a importância que teve para ela. Dineia sempre foi muito solicita, organizava passeios e eventos na escola, em parceria com Noelice. As duas viviam juntas. Era algo além da lição para a prova.

Hoje eu também sou professora e, cada vez que repenso minha prática educativa, no fundo, fico com vontade de, no futuro, ser uma lembrança positiva para as inúmeras vidas que passaram e passarão por minhas mãos. Tenho percebido que, além do conteúdo programático, a nossa responsabilidade é ensinar o afeto, sobretudo quando vivemos em um momento tão carente de afeição e compreensão. Isso, em parte e na prática, aprendi na universidade, com as professoras Alana, Elvya e Nadja, mestras nos cuidados e na escuta. E sobre elas ainda escreverei um dia.

17/09/2017


FRANCO, Elis. Memórias afetivas. 2ª ed. ampliada. Salvador: Cogito, 2022. p. 23-24

A música continua a tocar - Elis Franco





“Continuamente vemos novidades”

(Camões)

       

        Estive fazendo uma análise de quanta coisa mudou em minhas quase quatro décadas de vida. Digo de vida e não de existência, pois acho que só passei a existir depois que tomei consciência de que eu era um ser no mundo, então, devo ter perdido aí uns aninhos. Fiquei surpreendida ao analisar apenas um item da lista: como eu tenho ouvido músicas durante esse período. Lembrei-me, então, da época em que existiam as radiolas, os radinhos de pilha eram também um sucesso, e os que possuíam um gravador de fita cassete nem se fala. Era um tempo bom demais!

        Na minha casa havia uma radiola, mas eu não tenho muita lembrança do que se ouvia nela. Sei apenas que devo ter aproveitado um pouco daquela tecnologia, pois, até hoje, tenho dois discos, do início da década de noventa, guardados, não pelo fato de serem discos, mas porque são de uma banda que eu sou fã. Uma pena não poder tocá-los, já que não sei que fim levou a radiola. Sobre as fitas cassetes, tenho lembranças boas e ruins. Bom era ficar ouvindo um programa na rádio, esperar sua música preferida e apertar o botão para gravar. E aquele registro ficava gravado para tocarmos quando quiséssemos.

        Melhor ainda foi quando lançaram os CDs, porém, como eram caros, às vezes tínhamos que continuar com nossa fitinha, ou pedíamos a uma amigo para reproduzir uma cópia do CD para nós. Mas, como nossa felicidade é clandestina, como disse Clarice Lispector, quando menos imaginávamos a fita enroscava e perdíamos tudo; quando tínhamos oportunidade, pegávamos uma caneta e tentávamos colocá-la no devido lugar. Era uma lástima! De repente, as nossas fitas saíram de circulação, o mercado fonográfico investiu pesado no novo modelo de venda. Eu adorava comprar o CD, olhar o encarte, ler as letras das músicas, descobrir os compositores. Era um ritual! Até o momento em que eles apareciam arranhados.

        E veio a pirataria... Deixou-se de investir na produção de CDs e, quando produziam, eram de uma pobreza, os encartes foram desaparecendo. Agora os artistas criam álbuns virtuais, a internet é a responsável por divulgar os novos hits no Spotify, Palco MP3 e tantos outros canais de divulgação. E eu perdi meu rito. Reconheço, porém, que os recursos atuais possibilitam uma maior democratização da música: baixamos, compartilhamos. Isso é bom. E viva o smartphone!

        Só que eu,“dinossáurica” que sou, apesar de conviver bem com esse novo modo de escuta musical, entendendo, inclusive, que facilita bastante a minha vida, sinto saudade dos encartes, das letras ali, diante de meus olhos, enquanto eu dava uma pausa no dia, não apenas para ouvir uma canção, mas para aprendê-la em cada detalhe: admirar a arte da capa, as fotografias dos artistas. Ainda bem que, em meio à crise nas vendas de CDs, ainda há alguns poucos artistas que permitem que meu ritual antigo continue. Uma hora, quem sabe, eu deixo de ser saudosista.

29/08/2017


Franco, Elis. Memórias afetivas. 2ª ed. ampliada. Salvador: Cogito, 2022. p.21-22

                                       

Aquele velho retrato - Elis Franco




“Álbuns são memórias dilatadas
Às vezes curam, outras tantas, doem.”
“Elis Franco”
 

Sou da época que máquina fotográfica era artigo de luxo e, quando precisávamos de uma fotografia, em momentos celebrativos, deveríamos contratar um fotógrafo, nem sempre um profissional, mas alguém que possuía uma máquina de qualidade discutível. Era horrível não saber como saímos na foto e, ao recebermos os retratos, como até hoje chama minha mãe, estávamos lá com olhos fechados ou vermelhos, numa pose meio esquisita, e nada poderíamos fazer a não ser nos contentarmos com aquele registro horroroso.

Quando eu comecei a trabalhar, comprei uma máquina dessas e, a partir de então, pude ir registrando um pouco mais os momentos vividos: comprava o filme de vinte e quatro ou trinta e seis poses, pilhas, e corria o risco de vê-lo “queimar”. Tínhamos todo um cuidado para não desperdiçarmos o filme, não era fácil ceder uma pose para alguém. Assim que batíamos todas as fotos, corríamos até uma casa especializada em revelação e ficávamos torcendo para que tivéssemos saído bem na fita.

Depois, as máquinas digitais ficaram mais acessíveis e podíamos observar a imagem e descartá-la, caso ela não estivesse boa. Isso diminuiu um pouco a ansiedade que sentíamos. Em seguida, os aparelhos celulares democratizaram o direito à imagem, ficou fácil registrar as banalidades ou os raros momentos vividos; ficou fácil deletar a foto indesejada, modificá-la, distorcer a realidade ainda mais. Perdeu-se, na maioria das vezes, aquele rito de imprimir as fotografias e guardá-las em álbum. Nossas imagens, hoje, são dessacralizadas nas redes sociais.

Eu, talvez por ser uma pessoa “dinossáurica”, continuo revelando minhas fotos, assim como prefiro livos impressos e gosto de comprar cd’s. Tenho vários álbuns, com as fotos cronologicamente organizadas. Minhas fotografias contam um pouco da minha história. Todas as vezes que retiro meus álbuns do armário e olho minhas imagens, as imagens de meus parentes e amigos, é como se eu estivesse revendo a minha história; percebo, inclusive, que eu já vivi momentos maravilhosos, os quais superam os desafios vividos.

Ao rever cada foto, percebo que muitas pessoas ficaram para trás, amigos de infância que eu não sei que destino levaram. Eu sinto uma saudade gostosa.  Às vezes, dou de cara com alguém que já não vive mais, entristeço-me; outras, sorriu ao pensar no momento em que aquele registro foi feito. Nessa rememoração, há uma parte de minha vida que me escapa: os meus primeiros anos. Eu tenho raríssimas fotos de minha infância, e apenas a partir dos sete anos. É a minha lacuna existencial... Só posso preenchê-la a partir dos relatos que outros fazem de mim, ou da minha memória imaginativa que, certamente, me trai. E dói não saber como fui no início, ainda que não saiba, também, de que serviria saber.

13/08/17

FRANCO, Elis. Memórias afeticas. 2º ed. ampliada. Salvador: Cogito, 2022. p.19-20

Memórias afetivas - Elis Franco


“Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!”

(Casimiro de Abreu)

        

“Para a memória, a meninice se converte no arquétipo da existência feliz,
ignorante da morte.”
(Josep.M. Esquirol)
 

Há acontecimentos que se tornam lembranças positivas, compondo nossas memórias afetivas e, creio eu, os episódios da infância e adolescência marcam-nos de modo mais intenso. Ao nos tornarmos adultos, nem sempre conseguimos lembrar-nos com tanta clareza das situações que nos afetaram, mas, quando há algo de significativo e forte no que vivemos, fica aquela imagem registrada em algum lugar do coração, pois, simbolicamente, é para lá que importamos tudo que nos importa, por isso, é interessante preencher-nos apenas com aquilo que nos traz paz, ainda que nem sempre consigamos.

            Entre as situações passadas que despertam em mim uma saudade gostosa estão comer o cavaco de dona Clarice, durante o intervalo, na escola pública onde estudei, e esperar o senhor do quebra-queixo, geralmente aos finais de semana, passar em minha rua, com seu carrinho adaptado, ofertando-nos a alegria de saborear aquele doce de coco inesquecível. O cavaco de dona Clarice era uma massinha assada, fininha e sem recheio, polvilhada com açúcar. Esperávamos, ansiosamente, o momento em que ela, com seu carrinho de mão, chegasse ao colégio para adoçar nossas manhãs ou tardes. Acredito que aquele petisco era nosso preferido pelo fato de custar bem menos do que os outros lanches vendidos, e isso facilitava a nossa vida de estudantes pobres.

            Quanto ao senhor do quebra-queixo, lamento muito não me lembrar de seu nome agora, mesmo tendo esforçado-me para isso. Se minha memória não me traiu, acredito que ele tenha sido avô de uma amiga de classe. O fato é que, quando ele passava na rua anunciando a sua guloseima, corríamos, cada um com o valor que dispunha, a fim de que ele cortasse o pedaço justo pelo quantia paga. Aquele senhorzinho talvez nunca tenha imaginado o quanto a sua passagem era importante para nós, não apenas para as crianças, mas para todos aqueles que o aguardavam desejosos.

            Do velhinho eu não tenho notícias, tenho apenas a sua imagem faceira descendo a rua e reunindo-nos ao seu redor. Dona Clarice mora agora mais perto de mim e abandonou o carrinho de mão, tornou-se proprietária de um mercado bem variado. Eu já não sou a criança da escola, no entanto, guardo vivas as lembranças daquela época. Faz anos que não como um cavaco, penso até em aprender a receita. Quebra-queixo eu compro sempre e não há como não me lembrar do senhor com seu carrinho adaptado, mas desconfiando que a produção industrializada tirou o sabor daquele doce de outrora. E tudo isso me leva a pensar no tanto de afeto que os dois colocavam naquelas receitas, a ponto de eu, ainda hoje, sentir tão presentes aqueles marcantes sabores.

 

11/08/17

FRANCO, Elis. Memórias afetivas. 2ª ed. ampliada. Salvador: Cogito, 2022. p. 17-18

A primeira lição sobre o amor - Elis Franco





“E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.”

(Vinicius de Moraes)

 

Outro dia, estava eu deitada no sossego do meu quarto, quando minha filha caçula, depois de eu ter enchido a paciência dela para deixar um pouco de lado a televisão e o tablet, apareceu com um inseto preto e branco, o qual chamou de “joaninha” (e eu não falei nada porque achei que era uma joaninha mesmo, mas na verdade é mais conhecido como “soldadinho”), perguntando-me empolgada se ela poderia cuidar dele “pra sempre”. Era uma alegria tão contagiante, que me fez levantar para observar aquele pequenino ser, tão delicado, pousado sobre uma folhinha verde que ela trazia em uma das mãos.

Rapidamente, mais rápido do que eu poderia supor, afirmei que ela poderia cuidar sim do pequeno bichinho. Eu só não esperava que ela fosse pedir para colocá-lo em um vaso com tampa, a fim de que o precioso animalzinho não fugisse de seu poder. Confesso que não pensei muito para responder e disparei algumas informações, em um tom de voz meigo e cuidadoso, pois tudo que eu não desejava era acabar com o brilho existente em seus olhos.

– Minha querida, você poderá ficar com ele, mas não deve aprisioná-lo, porque se ele ficar sem oxigênio irá morrer.

– E o que eu faço, então? Falou com ar meio triste.

– Você deve cuidar dele, ficar com ele, até o dia em que ele desejar. Uma hora ele precisará voar novamente e você terá de permitir. O “pra sempre” acabará nesse momento.

Ao contrário do que eu esperava, a danada balançou a cabeça em sinal afirmativo, partindo do quarto feito louca, talvez para aproveitar o máximo de tempo que seria o sempre do soldadinho. Só aí eu percebi que, sem querer, havia ensinado a ela a sua primeira lição sobre o amor. Uma lição que pareceu a ela tão simples, tão fácil de ser executada, porém, para nós adultos, é cheia de impasses e dificuldades de assimilação.

Quando aquele momento passou, eu nada mais soube sobre a joaninha dela. Não me lembrei de perguntar, ou não quis, sei lá! Um dia, provavelmente, eu terei de conversar sobre outras lições amorosas. Voltarei a falar sobre o pequeno inseto da infância e mostrarei que, em uma tarde qualquer, ela havia aprendido a primeira lição sobre o amor. Mas aí ela será jovem ou adulta e, infelizmente, talvez não consiga mais ter a mesma reação que teve quando criança.

15/03/15


FRANCO, Elis. Memórias afetivas. 2ª. ed. ampliada. Salvador: Cogito, 2022. p. 15-16