terça-feira, 2 de setembro de 2025

A música continua a tocar - Elis Franco





“Continuamente vemos novidades”

(Camões)

       

        Estive fazendo uma análise de quanta coisa mudou em minhas quase quatro décadas de vida. Digo de vida e não de existência, pois acho que só passei a existir depois que tomei consciência de que eu era um ser no mundo, então, devo ter perdido aí uns aninhos. Fiquei surpreendida ao analisar apenas um item da lista: como eu tenho ouvido músicas durante esse período. Lembrei-me, então, da época em que existiam as radiolas, os radinhos de pilha eram também um sucesso, e os que possuíam um gravador de fita cassete nem se fala. Era um tempo bom demais!

        Na minha casa havia uma radiola, mas eu não tenho muita lembrança do que se ouvia nela. Sei apenas que devo ter aproveitado um pouco daquela tecnologia, pois, até hoje, tenho dois discos, do início da década de noventa, guardados, não pelo fato de serem discos, mas porque são de uma banda que eu sou fã. Uma pena não poder tocá-los, já que não sei que fim levou a radiola. Sobre as fitas cassetes, tenho lembranças boas e ruins. Bom era ficar ouvindo um programa na rádio, esperar sua música preferida e apertar o botão para gravar. E aquele registro ficava gravado para tocarmos quando quiséssemos.

        Melhor ainda foi quando lançaram os CDs, porém, como eram caros, às vezes tínhamos que continuar com nossa fitinha, ou pedíamos a uma amigo para reproduzir uma cópia do CD para nós. Mas, como nossa felicidade é clandestina, como disse Clarice Lispector, quando menos imaginávamos a fita enroscava e perdíamos tudo; quando tínhamos oportunidade, pegávamos uma caneta e tentávamos colocá-la no devido lugar. Era uma lástima! De repente, as nossas fitas saíram de circulação, o mercado fonográfico investiu pesado no novo modelo de venda. Eu adorava comprar o CD, olhar o encarte, ler as letras das músicas, descobrir os compositores. Era um ritual! Até o momento em que eles apareciam arranhados.

        E veio a pirataria... Deixou-se de investir na produção de CDs e, quando produziam, eram de uma pobreza, os encartes foram desaparecendo. Agora os artistas criam álbuns virtuais, a internet é a responsável por divulgar os novos hits no Spotify, Palco MP3 e tantos outros canais de divulgação. E eu perdi meu rito. Reconheço, porém, que os recursos atuais possibilitam uma maior democratização da música: baixamos, compartilhamos. Isso é bom. E viva o smartphone!

        Só que eu,“dinossáurica” que sou, apesar de conviver bem com esse novo modo de escuta musical, entendendo, inclusive, que facilita bastante a minha vida, sinto saudade dos encartes, das letras ali, diante de meus olhos, enquanto eu dava uma pausa no dia, não apenas para ouvir uma canção, mas para aprendê-la em cada detalhe: admirar a arte da capa, as fotografias dos artistas. Ainda bem que, em meio à crise nas vendas de CDs, ainda há alguns poucos artistas que permitem que meu ritual antigo continue. Uma hora, quem sabe, eu deixo de ser saudosista.

29/08/2017


Franco, Elis. Memórias afetivas. 2ª ed. ampliada. Salvador: Cogito, 2022. p.21-22

                                       

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