“Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!”
(Casimiro de Abreu)
Há
acontecimentos que se tornam lembranças positivas, compondo nossas memórias
afetivas e, creio eu, os episódios da infância e adolescência marcam-nos de
modo mais intenso. Ao nos tornarmos adultos, nem sempre conseguimos lembrar-nos
com tanta clareza das situações que nos afetaram, mas, quando há algo de
significativo e forte no que vivemos, fica aquela imagem registrada em algum
lugar do coração, pois, simbolicamente, é para lá que importamos tudo que nos
importa, por isso, é interessante preencher-nos apenas com aquilo que nos traz
paz, ainda que nem sempre consigamos.
Entre as situações passadas que
despertam em mim uma saudade gostosa estão comer o cavaco de dona Clarice,
durante o intervalo, na escola pública onde estudei, e esperar o senhor do
quebra-queixo, geralmente aos finais de semana, passar em minha rua, com seu
carrinho adaptado, ofertando-nos a alegria de saborear aquele doce de coco
inesquecível. O cavaco de dona Clarice era uma massinha assada, fininha e sem
recheio, polvilhada com açúcar. Esperávamos, ansiosamente, o momento em que
ela, com seu carrinho de mão, chegasse ao colégio para adoçar nossas manhãs ou
tardes. Acredito que aquele petisco era nosso preferido pelo fato de custar bem
menos do que os outros lanches vendidos, e isso facilitava a nossa vida de
estudantes pobres.
Quanto ao senhor do quebra-queixo,
lamento muito não me lembrar de seu nome agora, mesmo tendo esforçado-me para
isso. Se minha memória não me traiu, acredito que ele tenha sido avô de uma
amiga de classe. O fato é que, quando ele passava na rua anunciando a sua
guloseima, corríamos, cada um com o valor que dispunha, a fim de que ele
cortasse o pedaço justo pelo quantia paga. Aquele senhorzinho talvez nunca
tenha imaginado o quanto a sua passagem era importante para nós, não apenas
para as crianças, mas para todos aqueles que o aguardavam desejosos.
Do velhinho eu não tenho notícias,
tenho apenas a sua imagem faceira descendo a rua e reunindo-nos ao seu redor.
Dona Clarice mora agora mais perto de mim e abandonou o carrinho de mão,
tornou-se proprietária de um mercado bem variado. Eu já não sou a criança da
escola, no entanto, guardo vivas as lembranças daquela época. Faz anos que não
como um cavaco, penso até em aprender a receita. Quebra-queixo eu compro sempre
e não há como não me lembrar do senhor com seu carrinho adaptado, mas
desconfiando que a produção industrializada tirou o sabor daquele doce de
outrora. E tudo isso me leva a pensar no tanto de afeto que os dois colocavam
naquelas receitas, a ponto de eu, ainda hoje, sentir tão presentes aqueles
marcantes sabores.
11/08/17
FRANCO, Elis. Memórias afetivas. 2ª ed. ampliada. Salvador: Cogito, 2022. p. 17-18
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